No último dia, essa cerimônia inter-religiosa foi realizada de forma conjunta, com cada uma das quatro tradições realizando em sequência suas orações, em locais diferentes, numa dinâmica inspirada em uma concepção do Padre Manfred (Coordenador do Centro de Diálogo e Orações onde ficamos hospedados), que metaforiza as Estações da Paixão de Jesus. Esse foi um momento muito tocante, pois todos pudemos ouvir os líderes religiosos lembrarem da importância de olharmos para aquele passado doloroso como um alerta e uma fonte de instrução para nossos dias e para o futuro.
Todas as noites, também tínhamos alguma prática coletiva: visitamos a impressionante exposição dos desenhos de Marian Kolodziej (o prisioneiro 432, que sobreviveu a quatro anos e meio em Auschwitz, e registrou em seus trabalhos a terrível realidade daqueles dias); participamos de dois Councils de todo o grupo, um dos quais ocorreu na noite de quinta-feira, dentro de um dos barracões de prisioneiros em Birkenau, com a presença de um dos únicos sobreviventes de uma fuga do Campo. E, na última noite, houve a celebração do Shabat, com presença opcional, após o que nos foi oferecido um jantar de encerramento, e uma confraternização de todos os participantes, com a oferta dos talentos daqueles que sentiram-se inspirados a tal.
Assim foram aqueles dias, em seu aspecto visível. Porém, no que me diz respeito, o mais significativo ocorria o tempo todo no mundo silencioso dos sentires, nas manifestações de emoções ora contidas, ora transbordantes em lágrimas e isolamentos silenciosos de muitos de nós. Ainda que as condições físicas fossem muitas vezes adversas – num dia ficamos na chuva, e em pelo menos em dois dias o vento era tão forte e tão frio durante os períodos de zazen que precisamos colocar pedras dentro dos sapatos para que não fossem arrastados para longe – o frio maior, a escuridão mais assustadora estava dentro de mim. Em muitos momentos, foi impossível entender o que quer que fosse; felizmente que assim foi, penso eu, pois desse modo pude seguir com mais disciplina as orientações de Genro Sensei e Glassman Roshi, que nos indicaram que, nesse Retiro, os maiores ensinamentos seriam dados por Auschwitz.
Indizível gratidão, supremo consolo. Lá estava o Buddha, em sua sua persistência e generosidade na Prática; comigo estava o Dharma, com sua preciosa profundidade e incompreensível eficiência; em minha determinação, fraquezas, desesperos e alegrias, também me acompanhava a Sangha, com sua harmoniosa manifestação de todas as inevitáveis diversidades.
Se tiver de resumir os sentimentos desses dias fecundos, devo falar de tristeza e esperança.
Talvez nunca em minha existência tenha contatado com tamanha tristeza, com tão profundo pesar. A dor indizível de ver o registro daqueles tantos olhares – nas fotos, nos desenhos – que já não tinham expectativa de ver qualquer outro horizonte que não fosse a morte sem qualquer compaixão ou respeito; os muitos sapatos, óculos, brinquedos, malas, cabelos, de pessoas que pereceram sem nenhum consolo de uma presença amiga; o silêncio frio daqueles barracões, onde os dias devem ter passado lenta e pesadamente para aqueles que sobreviviam para trabalhar e para desejar ao menos uma morte honrada, morte esta que tardava em vir libertá-los da dor interminável de continuarem vivos. Acima de tudo, porém, convivi e me permiti acolher a tristeza imensurável de perceber que, de fato, ainda colocamos em prática muito pouco do que podemos e devemos aprender com aquelas páginas vergonhosas de nossa história comum. Para além dos papéis das vítimas ou perpetradores daquele horror, persiste nossa experiência de seres humanos que, em muitas ou no mais das vezes, continuam insensíveis às necessidades alheias. E, principalmente, continuamos a temer a diversidade, a culpabilizar o que não aceitamos, a punir o que escapa ao nosso entendimento ou interfere em nossos interesses limitados, egoístas. Persistimos em nos julgar de algum modo melhores ou especiais, e desse modo preparamos o terreno para o preconceito, esse brutal e cruel obstáculo à manifestação de uma cultura de paz. Assim, seguimos a conviver em uma cultura muito pobre em termos da realização autêntica de nossos sonhos existenciais mais profundos.
Pois bem; se tamanha tristeza me fez companhia naqueles imensos espaços gélidos, assim também andei por lá de mãos dadas com uma luminosa esperança. Aprendi com alguns eventos da história daqueles Campos que o ser humano pode efetivamente ir além das limitações do si mesmo, e tocar os limites da compaixão. Por exemplo, lá está o relato sobre o prisioneiro 16670 – o Padre católico polonês Maximilian Kolbe – que silenciosamente submeteu-se a morrer de fome para salvar a vida de outra pessoa condenada à mesma forma de execução. Lá, no decorrer do Retiro, pude testemunhar a sincera determinação de tantos participantes que, corajosamente, mantiveram-se firmes na Prática, apesar das dores e revoltas daqueles ligados de alguma forma às vítimas, e apesar das culpas e vergonhas herdadas por aqueles ligados de algum modo aos perpetradores. Para todos, restava a consoladora possibilidade do agora, esse terreno fértil e real, que pode gestar um novo porvir. A cada depoimento, a cada manifestação honesta que alguém fazia de seus sentimentos, todos nós nos sentíamos fortalecidos para expressar cotidianamente que algo temos aprendido com a história daqueles dias de horror. Na minha experiência, algo extremamente significativo foi ver, uma vez mais, como é bonito e inspirador participar da convivência pacífica e respeitosa entre as diferentes tradições espirituais.
Foi emocionante ver, ao longo dos dias e de diversas formas, a forma como interagiram, em uma motivação fraterna e sábia em suas manifestações, o Rabino Ohad, o Imam Ihab, Padre Manfred, Glassman Roshi e Genro Sensei. Algo tão simples e tão raramente colocado em prática: se todos desejamos ser felizes, como podemos aspirar a ver isso manifesto se não respeitamos e valorizamos a diversidade de tantas visões sobre como ser feliz? É necessário e urgente que nos permitamos a experiência de conviver com exemplos desse tipo de comportamento edificante.
Finalmente, se algo o Retiro em Auschwitz-Birkenau já me ensinou, foi que devo em qualquer circunstância manter firme e serena a minha Prática; devo persistir no cultivo das sementes de paz em meu coração – pois se elas não germinarem ali, certamente não florescerão ou darão seus frutos no mundo; e, para meu próprio bem e o de todos os seres, devo respeitar e valorizar os ensinamentos do Dharma e os exemplos dos Professores e Professoras, seguindo com humildade os chamados que consigo captar. Naqueles dias, comprovei que, se um Sesshin em um Campo de Concentração pode parecer algo um tanto extremo e amedrontador, mais extremo e trágico é aceitar viver um dia de nossas vidas sem perceber a preciosidade nele contida, como se pudéssemos ter uma segunda chance de viver de novo esta vida.
Aspiro que possamos cultivar a sabedoria e a compaixão aqui e agora, e manifestá-las em todas as nossas relações. Que eu possa sinceramente dedicar todos os méritos de minha Prática ao benefício de todos os seres. Que todos os seres possam ser felizes, livres e pacíficos.
Jorge Koho – novembro/2010