
Você, que chama José Miguel Wisnik de tudo – parceiro de Tom Zé e de Caetano Veloso, compositor (assinou a trilha do filme Terra Estrangeira e lançou três CDs), doutor e professor (formado em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP) e ensaísta (autor de O Nacional e o Popular na Cultura Brasileira) -, pode classificá-lo também como especialista em futebol.
Desde que lançou Veneno Remédio – O Futebol e o Brasil (Cia das Letras, 488 páginas, R$ 41), Wisnik é apontado como craque do gênero. Um goleador de estirpe.
A última atração do Conversas no Cofre, dentro do projeto O Verão É Aqui!, do Santander Cultural, Wisnik, 60 anos, é o convidado desta quinta-feira, às 18h30min, num encontro denominado Futebol-Cabeça, conduzido por Luís Augusto Fischer e Claudia Tajes no Café do Cofre, no subsolo do Santander, no Centro da Capital. A entrada é franca. Grátis.
Leia abaixo a entrevista com o autor:
Zero Hora – O futebol não costuma estacionar na lista dos livros mais vendidos. O que o levou a escrever um livro sobre futebol que, em tese, não interessa muito ao leitor comum, o cara que consome futebol todos os dias, todas as horas, no rádio, na tevê e no jornal?
José Miguel Wisnik – Em princípio, quem vive o futebol intensamente não se interessa por reflexões sobre ele, e quem se interessa por reflexões em livro não costuma ver no futebol um assunto digno delas. De certo modo eu quis vazar essa dupla defesa, não para ocupar a lista dos mais vendidos mas para tentar colocar no foco da atenção esse fenômeno que está em toda parte e que permanece no entanto como um ponto cego.
ZH – Mas, ao entrar no livro, o leitor se depara com uma obra superior, capaz de despontar como um dos melhores livros já escritos sobre o futebol no Brasil. Quais os desafios que o senhor encontrou para escrever o livro?
Wisnik – A questão sempre foi encontrar o tom adequado: não falar empolado, não ficar girando nos pontos em falso da prosa acadêmica, ser consistente tocando a bola pra frente sem perder a visão de conjunto. Num mundo atual francamente futebolizado, e falando a partir do “país do futebol”, contribuir para fazer dele um campo de reflexão em que entram sociologia, antropologia, psicanálise, estética e imaginação ensaística. Confesso que eu quis também rebater a superficialidade pesada de parte da crítica cultural com uma espécie de “leveza profunda”.
ZH – O senhor observa o futebol praticado no Brasil, fala dos negros, entra na influência européia, toca nos vizinhos valentes da Argentina e do Uruguai. Mas, ao mesmo tempo, o senhor entra na mitologia da bola e exibe até certo ponto alguns males do futebol globalizado. Copmo mo senhor vê o futebol hoje?
Wisnik - Costuma-se falar uma fase pré-moderna do futebol (que vai da sua invenção na Inglaterra da segunda metade do século XIX até sua primeira difusão pelo mundo e sua assimilação à vida das cidades industriais), numa fase moderna (cujo auge seria a conquista do tricampeonato pelo Brasil em 1970, tendo Pelé como epicentro), e numa fase “pós-moderna”, em que a polivalência tática em campo, a vedetização do treinador, o desairragamento dos jogadores pelos clubes e a mercantilização generalizada são alguns dos sinais mais marcantes. No livro, procuro evitar a tendência muito recorrente e muito simplista a reduzir diretamente o futebol aos interesses mercantis, embora acredite não ter fugido desse tema em nenhum momento. É que o futebol é, entre todos os esportes com bola difundidos no século XX, aquele que mais reúne em sua própria textura elementos modernos e pré-modernos, o que é uma das chaves para entender a sua assimilação e a sua reinvenção no Brasil.
ZH – No futebol gaúcho duelam Grêmio e Inter. O que o senhor podem dizer sobre este o enfrentamento histórico das duas equipes, que dividem famílias, amigos, um Estado?
Wisnik – Justamente, eu acho que esse traço do jogo, ao dividir cidades e sociedades em campos simbólicos e imaginários opostos, disputando uma espécie de permanente Fla-Flu (a expressão meio carnavalesca inventada por Mario Filho é deliciosa) é um elo com processos arcaicos que o futebol transpôs para a vida moderna. A dualidade clubística existe em tantas, senão todas, grandes cidades do Brasil, mas no Rio Grande do Sul ganha talvez um aspecto mais marcado, numa cultura conhecida por traçar fronteiras a faca. O que define o processo, em geral, não é propriamente a oposição por classes sociais (embora possa estar na origem dos clubes) nem por ideologias, mas por um ethos compartilhado através dos quais os grupos elaboram a relação com a violência. O futebol canaliza a violência potencial e difusa para um destino simbólico, embora a violência latente, que o futebol sublima, esteja sempre a ponto de retornar. Quando a rivalidade clubística atende à necessidade de um outro que me afirme ao me negar, necessidade dialética inerente à constituição da própria identidade, fazendo com que cada parte aceite a sua cota de vitória e de derrota, o jogo é civilizador. Quando a rivalidade clubística implanta o impulso a negar o outro cuja simples existência me nega, ele degringola em luta de morte entre torcidas e sinaliza a própria impossibilidade do acordo social. É fácil reconhecer nesse processo uma espécie de maquete viva de tantas situações do mundo contemporâneo, em tantas áreas da existência. É por isso que no futebol está cifrado o destino frágil da vida contemporânea.
ZH _O senhor pensa num novo projeto sobre futebol?
Wsinik _ Não, agora, é voltar para música e literatura, literatura e música.
Leia mais detalhes sobre a visita do escritor José Miguel Wisnik na capa do Segundo Caderno, encartado na edição desta quinta feira em Zero Hora. Não perca, leia, vá. Você vai ganhar seu dia.
Postado por Zini, Porto Alegre
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