
O nome correto é South-West Towship (Município do Sudoeste). A contração das palavras inglesas gerou Soweto.
O endereço da periferia de Joanesburgo, cidade mais rica do país, se transformou em curiosidade, espanto e então reverência mundial depois que o movimento antiapartheid foi buscar c
oragem, inspiração e cérebro entre os negros que viviam confinados na área até os anos 1990. Nelson Mandela foi preso na sua casa nos anos 1960 (na residência funciona um museu, foto ao lado).
Duas décadas depois, Soweto mudou, cresceu e se transformou no lar de 1,4 milhão de pessoas, quase 100% negras. É fácil entrar, é mais fácil sair. Não imagine o lugar como uma grande Rocinha ou uma Vila Cruzeiro. Não é porque tem shopping center e um estádio, Soccer City, tinindo de novo para mais de 90 mil pessoas. Nem a palavra favela cabe para definir suas casas, não a maioria, talvez uma pequena minoria.
Durante quase cinco horas, na fria, porém ensolarada terça-feira, visitei a Igreja Católica Regina Mundi, ponto de protestos em tempos passados, e conheci o restaurante de parentes de Nelson Mandela, que fica ao lado da casa, hoje museu, em que ele viveu. Os dois lugares foram abraçados pelo governo e estão bem cuidados.
Lotado de curiosidade, avancei um pouco mais, pela estrada calçada e encontrei dois típicos moradores locais: o primeiro quer ficar, a casa é sua, não há outra região como o lugar onde as pessoas nascem, crescem e fazem amigos. Já o outro quer sair, mudar de vida, está farto de viver com migalhas dos outros, brancos em sua maioria.
Soweto não é mais um gerador de ativistas, nem uma fábrica de mais elementos, mas ainda é endereço de gente indignada. Mostra vilas de operários, mas também casas com piscinas. Carros caindo aos pedaços, carroças, catadores de lixo ao lado de BMWs e Mercedes. Exibe museus, bons restaurantes e turistas de diversos sotaques, como os alemães, italianos e suecos de ontem, mas igualmente vendedores de frutas, barraquinhas de lanches e feiras que lembram as dos nossos hippies das pracinhas.
Soweto é um lugar comum, de gente comum, mas sabe ser um local especialíssimo como nenhum outro no planeta. Numa mesma rua moraram dois Prêmio Nobel, Desmond Tutu (vencedor em 1984) e Nelson Mandela (1993). Pode ser um lugar inóspito, um espaço histórico, um lugar de chorar. Basta pisar no primeiro degrau do espetacular Museu Hector Pieterson, erguido na mesma área onde centenas de estudantes foram mortos na revolta dos anos 1970. Hector tinha 12 anos, foi assassinado a 600 metros do museu.
No centro do memorial, acomodados no meio do cascalho, 350 tijolos exibem o nome dos 350 estudantes mortos a tiros pela polícia no dia 16 de junho de 1976. Uma série de vídeos, painéis e fotos reconstrói todo o drama. Só um zumbi não se arrepia.
Ao meu lado, uma inglesa chorava agarrada ao pescoço do marido, também emocionado. Soluçava. Quando eu passei, ela me olhou e disse:
– Que tipo de gente pode fazer algo assim?
Eu não falei nada. Ela perguntou sem mirar meu rosto:
– Será só pela cor?
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Vidas de Soweto
São cerca de 1,3 milhão de habitantes, quase uma Porto Alegre de pessoas vinculadas de uma forma ou de outra aos acontecimentos de um dos subúrbios mais cheio de História do mundo. Conheça algumas delas:
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A galinha de Madiba
Do outro da lado da casa onde Nelson Mandela viveu antes de ser preso durante 8.115 dias, Bonipwa Seakamela, 49 anos, instalou o Mandela Family Restaurant em 1998, agora refor
mado. Na frente, no pé de uma árvore, a ex-mulher de Mandela, Winnie, enterrou meses atrás o cordão umbilical do seu bisneto. Nos fundos, na cozinha, Bonipwa prepara o prato preferido do seu parente famoso.
– Ele (Mandela) adora Xoliswa Ndoyiya’s (algo como galinha adocicada). Quando vem, sempre pede. É um prato com galinha, chutney, páprica, maionese, curry e outras especiarias. Sirvo sempre com arroz. Ele pede e repete. Diga aos brasileiros que venham. Quero apresentar meu prato que encantou Madiba (nome pelo qual o líder era chamado pelo seu clã).
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Os gols de Freddy
Na frente da sua modesta casa de alvenaria, numa rua apertada, lotada de pequenas residências, Freddy Maditjane, 28 anos, fala com entusiasmo e otimismo dos cerca de 60 campos de futebol construídos em Soweto nos últimos anos. Não quer sair. Quer ficar onde nasceu e cresceu.
Estrela do futebol escolar, goleador em campeonatos locais, ele tentou ser profissional. Não conseguiu, mas as pessoas o respeitam, lamentam a falta de oportunidade no carente futebol local. Uns vizinhos ainda o enxergam como jogador, e chegam a pedir entradas para o Mundial:
– Como, se eu não tenho nem para o meu prazer? Vou me contentar com a TV. Viu? Falta de dinheiro é um dos problemas de Soweto.
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Os tiros de Danny
Danny Duse, 58 anos, tem muito para contar, pouco tempo para falar. É rápido, seu inglês sai truncado. Logo aponta a mão para o teto e diz:
– Dois tiros deste lado, três mais acima. Olha, lado esquerdo, outros quatro buracos. Mais dois ali.
Numa das entradas de Soweto, a Igreja Católica Regina Mundi é um endereço dos piores tempos da segregação racial. Soldados entravam atirando, nem sempre para cima.
– Multidões de irmãos negros invadiam a igreja fugindo dos protestos, a polícia entrava junto. Não respeitavam a cruz, os santos, a fé.
Danny diz que ainda sonha com as invasões e ora por todos. Nessa igreja, Nossa Senhora é negra. O Menino Jesus, também.
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O sonho de Faith
Ela diz seu nome.
– Faith.
Quando peço o sobrenome e a idade, Faith sai correndo para o fundo do bar.
– Não, nunca, Não digo nem amarrada. Não, não…
Dois minutos depois, sorriso escancarado ela volta.
– Espere, espere. Vou preparar meu melhor prato. Chama-se Kota. É um alimento popular em Soweto, pão, batatas fritas, queijo, molho forte e uma fatia de carne embutida e outra de queijo.
Seu bar, quase lacrado com barras de ferro, é conhecido na região como Papazac, homenagem ao pai que se chamava Zacharya. Não vende bebidas, só refrigerantes e uma Kota custa cerca de R$ 1,50. As pessoas fazem fila, mas Faith reclama:
– Não aguento mais, quero ir para a Espanha. Não posso mais viver neste país onde os brancos têm tudo e os negros quase nada. Isto é democracia?
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