Para o Túnel do Tempo, aí vai a terceira e última parte desse conto que escrevi em 1999 na Zero Hora.
***
O primeiro pensamento de Péricles foi de não comparecer àquele encontro. Não iria. Isso. Afinal, tratava-se de Dona Belinha, a mulher do Doutor Araújo, o seu gerente. Que era mais do que gerente: era o seu técnico no time da firma.
Mas depois lembrou da ligação. Sim, Dona Belinha ligara para ele à noite, quando ele fazia serão. E dissera-lhe todo o tipo de obscenidades. Quero que tu faças isso, quero te fazer aquilo… Não se identificara, evidentemente, mas Péricles reconhecera a voz. Assim, no dia seguinte, quando ela ligou de novo, ele pronunciou o nome dela. Fez apenas isso. Disse:
— Dona Belinha…
E ela desabrochou como uma petúnia no verão. Marcaram o tal encontro. Ele diria à sua mulher Mariana que ia fazer serão. Ela diria ao Doutor Araújo que ia num chá beneficente — Dona Belinha ia a chás beneficentes.
Péricles passou outra noite sem dormir. Sua mulher Mariana estava cada vez mais desconfiada. Observava-o com olhar perscrutador. Adivinhava algo, farejava a traição como se fosse pólen no ar da primavera. Aquilo deixava Péricles louco. Ele queria que Mariana confiasse nele. Queria muito! Amava-a.
Está certo, houve a loira. Olhos claros. Sardentinha. Aiai. Mas foi uma só vez. Só uma! Bem que Mariana podia ser mais compreensiva. Ele precisava recuperar a confiança extaviada da sua mulher. Mas agora havia Dona Belinha. Ah, Dona Belinha e suas pernas voluptuosas, suas pernas de pecado… Pecado! Era isso que ela era: o pecado!
Por essa razão, pensava em não comparecer ao encontro. Por causa de Mariana, sua mulher. E do Doutor Araújo, seu gerente e treinador. Doutor Araújo, que, como Mariana, desconfiava dele. Doutor Araújo achava que ele não tinha capacidade para ser o novo subchefe do setor e o quarto-zagueiro titular. Precisava da confiança do doutor Araújo! Precisava da confiança da sua mulher Mariana!
No dia seguinte, o peito de Péricles era um pacote de angústia. Às vezes, decidia não comparecer ao encontro, noutras, sonhava com todas as loucuras que Dona Belinha ciciava ao telefone. Via o Doutor Araújo andar pelo escritório e suspirava. Como podia fazer aquilo com um homem tão bom, que já estava quase confiando nele? Depois pensava nas pernas de pecado.
Assim ficou, até as oito da noite, hora do encontro. Haviam combinado num barzinho discreto no centro da cidade. Péricles remanchou, remanchou. Chegou com 15 minutos de atraso, torcendo as mãos. Ela já estava lá. Linda. De minissaia. Não tão curta quanto a do dia anterior. Mas era uma minissaia. Quando o viu, ela miou:
— Péricles.
Ele respondeu, num desabafo:
— Dona Belinha.
Ela sorriu:
— Péricles!
Ele aconchegou a mãozinha dela entre as suas:
— Dona Belinha!
Amaram-se durante exatas duas horas num pequeno, porém romântico, motel. Péricles tomou uma ducha antes de sair, mas chegou em casa com o cheiro dela impregnado nas narinas. Olhou para sua mulher Mariana e suspirou: estava feito, não podia mais voltar atrás. Havia cedido à tentação, aos apelos da carne. Fora fraco.
No entanto, não se arrependia. Queria muito tocar nas pernas de Dona Belinha. E tocara. Ah, como tocara. Talvez por isso sentia-se tranqüilo como há muito não se sentia. Sua mulher Mariana podia falar o que quisesse, podia ficar ciumenta, podia se queixar dele, mas jamais descobriria a grande verdade: ele era o amante da mulher do gerente!
Puxa, Péricles se sentia bem com essa idéia: era o amante da mulher do gerente. Sentia-se tão bem que estava leve, de bom humor. Mariana percebeu.
— Tu estás bem hoje, não? — perguntou ela, acariciando-lhe os cabelos. E ele:
— Sim, sim.
Então ela o beijou. Com ternura. Paixão, até. Naquela noite, amaram-se suavemente. Tudo o que existia de selvagem dentro dele se esvaíra com Dona Belinha. Para Mariana, restara o carinho e a doçura.
Foi uma grande noite para Péricles. Dormiu bem, fazendo do ombro o travesseiro de Mariana. Era a primeira vez, em um ano, que ela dormia amparada por seu braço. Aquela noite de sono sereno foi importante — no dia seguinte, sábado, aconteceria o jogo da semifinal.
Péricles acordou com um beijo de Mariana. Saiu de casa sorrindo. Chegou no vestiário assobiando. O Doutor Araújo já estava pronto para começar a preleção. Viu que ele o observava e que, entre os olhos, levava um ponto de interrogação.
— Não vacile hoje, seu Péricles — recomendou.
— Pode deixar, Doutor Araújo — exclamou Péricles, cheio de segurança.
Toda essa segurança ele carregou para a grande área. Lá, foi soberano. Foi o dono. O patrão. Era o Figueroa, era o Adílson Capitão América. Era o Péricles.
Na torcida, sua mulher Mariana, sorridente. Ao lado de Dona Belinha, ainda mais sorridente. Péricles também sorria enquanto jogava. Elas abanavam para ele, ele para elas. Todos sorriam. Jogou sua melhor partida. O time da firma venceu. Classificou-se. Péricles saiu de campo festejado.
O vestiário foi invadido pela torcida em festa. Sua mulher Mariana o cumprimentou com um beijo na boca. Dona Belinha se aproximou, abraçou-o e roçou seu rosto. Ao ouvido, lhe cochichou:
— Ainda essa semana, vamos festejar a vitória. Em particular.
Péricles estava feliz. Então viu o seu técnico, seu gerente. Doutor Araújo. Aproximava-se sério, como sempre. Tinha algo nas mãos. Olhou dentro dos olhos de Péricles.
Abriu um sorriso, logo ele, que nunca sorria, puxou a mão direita de Péricles e, na sua palma, deitou um objeto de pano. Uma fita negra. A faixa de capitão.
— Meu subchefe de setor tem que ser o capitão do meu time — declarou o Doutor Araújo.
Péricles olhou em volta. Sua mulher sorria, orgulhosa. Dona Belinha sorria, maliciosa. O Doutor Araújo sorria, o que era raro. Péricles também sorriu. Enxugou uma lágrima fugaz que lhe desceu do olho direito. Suspirou. Péricles, de fato, era um homem feliz.
*Texto publicado em 19/04/1999 em Zero Hora
Postado por David
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