Leitorinhos, hoje destaquei uma reportagem da década de 80 que vai estar no livro 45 reportagens que marcaram a história. Confiram aí:
Os Brasiguaios
Autor: Carlos Wagner
Publicação: maio de 1986
Foto: Ronaldo Bernardi Zero Hora encontrou um povo desconhecido vivendo no coração da América do Sul em 1986. Não se tratava de mais uma tribo indígena perdida no meio da selva. Pelo contrário. Muitos deles chamavam a atenção pelos olhos azuis e sobrenomes inconfundivelmente germânicos. Eram os brasiguaios, agricultores do Rio Grande do Sul e de outras partes do Brasil que estavam colonizando vastas áreas do Paraguai. Sem plenos direitos de cidadania em nenhum dos dois lados da fronteira, eram considerados homens sem pátria, vivendo em uma espécie de limbo da nacionalidade. Quando o repórter Carlos Wagner abordou o tema, em reportagens publicadas durante o mês de maio de 1986, esses brasileiros eram estimados em cerca de um décimo da população paraguaia - 350 mil pessoas, mais de 100 mil delas saídas do Rio Grande do Sul. Zero Hora era o primeiro jornal a dar a atenção que o assunto merecia e a dedicar-lhe uma reportagem de fôlego, ajudando a pôr o termo “brasiguaio” no vocabulário brasileiro, de onde nunca mais saiu. Wagner ouvira falar pela primeira vez da rota migratória durante a cobertura de conflitos agrários no interior do Rio Grande do Sul, no começo da década de 80. Também acompanhara a publicação de notas esparsas sobre dificuldades que os colonos brasileiros enfrentavam com as autoridades paraguaias – a maioria envolvendo escrituração de propriedades e vistos de permanência. Mas o estalo do repórter sobre a dimensão histórica do fenômeno ocorreu durante uma incursão pela Fazenda Annoni, em Sarandi, quando um sem-terra aproximou-se do carro de ZH e perguntou por notícias de um primo que estava no Paraguai, onde havia comprado terras com o dinheiro da venda de uma casa em Ronda Alta, pequena cidade do norte do Estado. Em um momento de crise no campo, os brasileiros corriam ao país vizinho porque lá as terras custavam uma fração do preço no Brasil. Wagner, o fotógrafo Valdir Friolin e o motorista Miguel Cunha viajaram de carro até o Paraguai para duas semanas de imersão no país brasiguaio. No meio do mato, em pontos remotos aonde se chegava por caminhos de chão batido, encontraram famílias gaúchas a domesticar a terra estrangeira. Depois do pesado trabalho na roça, esses agricultores sentavam-se na varanda e garantiam aos filhos: um dia aquele lugar inóspito seria uma cidade cheia de luzes, ruído de automóveis e prédios envidraçados. O sonho de muitos deles se realizou. Algumas das improvisadas aldeias de então são hoje cidades com milhares de habitantes, onde é normal escutar o português pelas ruas. Nunca foi um caminho sem percalços, revelou a reportagem. Sem um estatuto legal para ampará-los, os brasileiros eram presas fáceis da máquina de extorsão montada pelo general Alfredo Stroessner, um dos mais longevos e corruptos ditadores da América do Sul - subjugou o Paraguai de 1954 a 1989. Apesar de levarem o crescimento econômico à região, os brasiguaios também tiveram de enfrentar sentimentos nacionalistas e xenófobos por parte da população local - um problema que persiste, passadas mais de duas décadas. Responsável por apresentar essa realidade de forma pioneira e revelar para o Brasil a saga daqueles que se tornaram paraguaios na esperança de melhorar de vida, a reportagem venceu o Prêmio Esso para a Região Sul e virou livro, com o título Brasiguaios: Homens sem Pátria. Um terço dos camponeses são gaúchos Deixando uma trilha de mortes, sofrimentos e muito suor, agricultores brasileiros estão entrando em terras paraguaias. O governo do Brasil estima que existam 350 mil camponeses vivendo lá, dos quais 33% são gaúchos. Em regiões como o Alto Paraná, a de maior importância agrícola no Paraguai, na fronteira com a cidade brasileira de Foz do Iguaçu, há, em comunidades agrícolas e urbanas, cinco brasileiros para um paraguaio. Eles produzem 60% da soja e do algodão, os principais produtos econômicos do país. A história destes camponeses começou em 1959. Naquela época, o general Alfredo Stroessner começou a colocar em prática um plano de modernização econômica. Stroessner batizou seu plano de “Crescimento para fora”, significando o aumento da presença paraguaia no mercado externo. O forte da economia paraguaia sempre foi a agricultura, que representa mais de 60% do Produto Interno Bruto (PIB). Por isso, o alvo inicial dos tecnocratas paraguaios foi este setor. A palavra de ordem era modernizar através da mecanização em alta escala. Isso foi feito, mas não de imediato. A colonização do Alto Paraná foi planejada em etapas. A primeira delas foi a distribuição das terras. O governo Stroessner entregou a grandes colonizadoras brasileiras, norte-americanas, alemãs e japonesas a tarefa de organizar a distribuição de lotes. Os novos donos se encarregaram de expulsar os campesinos paraguaios, que eram, segundo um religioso que trabalhava com eles no Alto Paraná, considerados “indolentes para o pesado serviço de derrubar mato”. A retirada foi facilitada porque “eles não têm o mesmo sentimento de posse em relação à terra que o colono brasileiro tem. Eles simplesmente chegam e ocupam o solo”. Foto: Ronaldo Bernardi Solo faz a alegria dos Schöfer O filho caçula da família Schöfer ergue, com alguma dificuldade, uma imensa raiz de mandioca, para mostrar a fertilidade das terras paraguaias. Há cinco anos, os Schöfer venderam a propriedade de sete hectares e um automóvel Corcel que tinham no município gaúcho de Santo Ângelo. Compraram 79 hectares em Mbaracayú. O único receio que eles têm é perder a terra para as autoridades paraguaias, embora tenham a documentação em dia. Os boatos que circulam, na colônia, dão conta de agricultores que precisaram largar tudo e voltar ao Brasil, porque os documentos não foram reconhecidos. - O resto vai indo muito bem, obrigado - disse o filho mais velho dos Schöfer, Ovídio, 30 anos. A família também se ressente da falta de uma cooperativa no momento de comercializar os produtos. - Estes paraguaios são fogo quando a gente vai vender para eles. O bom é ter uma parte da safra contratada com eles e a outra com os brasileiros que vêm aqui comprar - reclamou Ovídio. Saudades de casa os Schöfer não sentem. - Trouxemos tudo que era nosso de lá. E aqui ao redor é só brasileiro - completou Ovídio.
Postado por David
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