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Yelitza Linares é uma jornalista venezuelana que conheci quando fui a Caracas. Tenho mantido contado com ela por email e pedi que me enviasse alguns textos sobre a situação de seu país. Com a ajuda de um amigo brasileiro, enviou-me um texto elegante, cheio de conteúdo, interessantíssimo. Leiam abaixo e sintam a consistência do texto de Yelitza.
“Afetos fora da mala
Esta semana se vai do país minha amiga Teresa, companheira de sonhos na universidade e de decepções na vida adulta.
Tenho testemunhado, com dor, este desterro forçado. Nos últimos dias, levo-a para buscar caixas para embalar, ajudo-a a fazer malas e a acompanho no ritual das despedidas, com a sensação desconcertante de que não mais voltarei a vê-la.
Já alugou o apartamento, vendeu o carro e negociou quase tudo o que tinha.
Demitiu-se do trabalho de editora numa revista e retirou a filha da escola.
Quando comunicou ao colégio que desistiria da matrícula em razão de um mestrado em Alicante, na Espanha, soube que três pais haviam feito o mesmo. Uma se ia com a família ao Canadá, outro tinha como destino o Panamá e o último os Estados Unidos. A temporada de estudos de Teresa e de tantos outros, obviamente, é uma desculpa para garimpar opções de trabalho no exterior com um visto de estudante.
O desejo central é sair da Venezuela.
Minha amiga passará a engrossar as estatísticas de venezuelanos imigrantes, muitos fugitivos da insegurança pública e do desemprego, resultado das oportunidades econômicas que se fecham. Há dois anos se alojou em meu coração um verso de Joan Manuel Serrat, que diz: “Seria fantástico poder ir distraído, sem correr risco“.
Ouço isto reverberar em mim, desde então.
É estranho que não haja uma família venezuelana de classe média que não esteja subtraída, com parentes no exterior. Avós, resignados, se conformam em acompanhar o crescimento dos netos via Facebook ou Skype.
Teresa não é a única de meu entorno a ir embora. Por idêntico motivo, já migraram para a Europa e para os Estados Unidos quase metade dos amigos da educação básica e um terço da secundária. Somo a isto os repórteres do jornal onde trabalho, que se demitem às pencas com o mesmo pretexto de estudar no Exterior. O último que apague a luz, dizemos, numa angústia disfarçada de humor.
Venezuela nunca havia experimentado uma diáspora até duas décadas atrás.
Atualmente, porém, depois de eleições ou de decisões radicais do Presidente Chávez, formam-se filas quilométricas diante dos consulados. Tal fenômeno se agravou com os 20 mil empregados de PDVSA, a companhia petroleira nacional, que foram despedidos em 2003. Dezenas de profissionais com um talento de alto nível foram reforçar os quatros de empresas estrangeiras, fora daqui.
Não é esse o caso de Teresa. Ela tinha trabalho, apartamento e carro, mas, a cada dia que rompia, ficava espiritualmente mais longe de Caracas e perto de Alicante. Nestes dias que antecedem a partida, Teresa prefere não ver jornais.
Prefere a clausura no que restou de seu lar. “Não suporto ouvir a voz de Chávez”, agrega.
A meta na mente de minha amiga e de muitos venezuelanos está longe, como diz o verso do poeta venezuelano Eugenio Montejo, referindo-se ao amor: “Seu corpo está comigo, mas dentro dele não há ninguém”. Teresa já não está na Venezuela.
Chora vez por outra, pelo que deixa atrás deste salto ao vácuo que está dando.
Nos últimos anos, os destinos de migrantes venezuelanos cresceram. Aos habituais Estados Unidos, Espanha, Canadá e Austrália, somamos os países do entorno:
Colômbia, Argentina, Chile e México. Os vizinhos são mais atrativos porque têm condições de vida segura, uma inflação domesticada e o mesmo idioma. Também são países mais receptivos, com menos burocracia para a concessão do visto.
Nos derradeiros dias antes da partida, Teresa confessa: “Dizem que o mais difícil é obter visto, dólares em valor civilizado ou mudar de casa. Não é nada disto. O mais difícil é fazer as malas. Que deixo? O que levo?”
É verdade. Como guardar duas vidas em quatro malas? Pior que isso, ela não diz, é que ali não coube os afetos. (No próximo post vou explicar para vocês a principal razão por a qual muitos venezuelanos querem ir embora).”
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