SODOMA & GOMORRA. E AS FILHAS DE LOT
Os arqueólogos suspeitam que Sodoma, Gomorra e mais outras três cidades, Zoar, Admá e Zebolim, ficavam encravadas em um lugar aprazível chamado Vale dos Campos, que hoje dorme sob as águas densas do Mar Morto. Se for verdade, as cidades logo brotarão do fundo do mar, que na verdade não é um mar, é um lago. É que o Mar Morto já perdeu um terço da sua área, devido ao uso que Israel e Jordânia fazem das águas do seu principal afluente, o Rio Jordão.
Há 3.800 anos, Sodoma e Gomorra faziam e aconteciam na superfície. Segundo a Bíblia, o pecado dos habitantes das cidades era “muito grande”. O que faziam? Presumivelmente, os sodomitas sodomizavam-se e os gomorritas gomorrizavam-se, o que deve ser horrível. Deus, então, teria falado com Abraão a respeito e anunciado suas intenções de destruir as cidades pecadoras com fogo e enxofre, o que é mais horrível ainda. Abraão decidiu interceder pelos sodomitas e gomorritas. Seguiu-se, então, uma espetacular negociação entre Abraão e o Senhor. Abraão argumentou, apelando para os bons sentimentos do Todo-Poderoso:
“Fareis o justo perecer com o ímpio? Talvez haja 50 justos na cidade: fá-los-eis perecer? Não perdoaríeis antes a cidade em atenção aos 50 justos que nela se poderiam encontrar? Não, Vós não poderíeis agir assim, matando o justo com o ímpio, e tratando o justo como o ímpio! Longe de Vós tal pensamento. Não exerceria o Juiz de toda a Terra a justiça?”
Ouvindo aquilo, o Senhor ponderou sobre os argumentos de Abraão e cedeu:
“Se eu encontrar em Sodoma 50 justos, perdoarei toda a cidade em atenção a eles”.
Um a zero para Abraão. Mas ele devia suspeitar que a probabilidade de encontrar 50 justos em Sodoma era pequena, porque, ardiloso, prosseguiu:
“Não leveis a mal se ainda ouso falar ao meu Senhor, embora seja eu pó e cinza. Se por ventura faltar cinco aos 50 justos, fareis perecer toda a cidade por causa desses cinco?”
E o Senhor:
“Não a destruirei se nela encontrar 45 justos!”
Abraão não se deu por satisfeito. Continuou:
“”Mas talvez só haja aí 40…”
“Não destruirei a cidade por causa desses 40″, respondeu o Senhor.
E Abraão, cheio de humilde malandragem:
“Rogo-Vos, Senhor, que não Vos irriteis se eu insisto ainda… Talvez só se encontrem 30…”
O Senhor, do alto de Sua proverbial paciência, respondeu:
“Se eu encontrar 30, não o farei!”
Mas Abraão, testando ainda mais os limites do Todo-Poderoso, foi em frente:
“Desculpai, se ouso ainda falar ao meu Senhor: pode ser que só se encontrem 20…”
E o Senhor, decerto depois de um suspiro celestial:
“Em atenção aos 20, não a destruirei!”
Abraão, arrojado, seguiu com seu plano:
“Que o Senhor não se irrite se falo ainda uma última vez! Que será, se lá forem achados dez?”
E Deus, provando que tem uma tolerância bem maior do que a minha, por exemplo, concordou:
“Não a destruirei por casa desses dez!”
E se retirou, antes que Abraão voltasse a incomodar.
Você pode tirar muitas interpretações do diálogo. Eu, aqui, vejo a vocação para a negociação que têm os povos árabes e judeus, dos quais Abraão é o pai.
De qualquer forma, Deus investigou e não encontrou justo algum em Sodoma e Gomorra.
As cidades seriam destruídas.
Para isso, Ele enviou dois anjos a Sodoma. Os anjos bateram à porta de Lot, o sobrinho de Abraão, que os recebeu muito bem, ofereceu-lhes um banquete, camas confortáveis e tudo o mais que a gente deve proporcionar a anjos quando eles aparecem na nossa casa, sobretudo se são anjos brabos, como aqueles. Depois de comer e beber, os anjos estavam prestes a se recolher. Precisavam descansar. Afinal, teriam muito o que fazer no dia seguinte. Destruir cidades inteiras a fogo e enxofre é trabalho duro.
Bem. Eles ainda não haviam se deitado, quando todos na casa se sobressaltaram com fortes batidas na porta. Eram os sodomitas, que gritavam:
– Lot! Onde estão os homens que entraram essa noite em tua casa? Conduze-os a nós para que os conheçamos…
Você sabe qual é a acepção do verbo “conhecer” na Bíblia. Quer dizer: os sodomitas queriam sodomizar os anjos. Lot se apavorou. Foi até o limiar da porta, fechou-a atrás de si e pediu que eles não fizessem aquilo.
– Tenho duas filhas que ainda são virgens – disse Lot. Eu vo-las trarei, e fazei delas o que quiserdes. Mas não façais nada a esses homens, porque se acolheram à sombra do meu teto.
Lot ofereceu as próprias filhas aos sodomitas!
Mas os sodomitas não aceitaram a proposta. Queriam porque queriam os anjos. O que nos força a uma dedução a respeito das filhas de Lot. Mantidas virgens em plena Sodoma e recusadas pelos sodomitas, que, a elas, preferiram dois homens, embora fossem belos como anjos, bom, isso só pode significar que as filhas de Lot eram no mínimo feinhas.
Assim, os habitantes de Sodoma pedalaram a porta da casa de Lot e estavam prestes a fazer sexo com os anjos, o que deve ser um pecado grave. Só que os anjos têm seus recursos e artimanhas. Antes que os sodomitas pusessem as mãos ávidas neles, o Senhor intercedeu e cegou-os a todos de um golpe.
Ao amanhecer, portanto, as cidades seriam destruídas inapelavelmente. Os anjos mandaram que Lot, sua mulher e as filhas fugissem para a montanha, não se detivessem em parte alguma e não olhassem para trás. Ao que, Lot argumentou:
“Oh, não, Senhor! Já que vosso servo encontrou graça diante de vós, e usaste comigo de grande bondade, conservando-me a vida, vede: eu não posso salvar-me na montanha, porque o flagelo me atingiria antes e eu morreria. Eis uma cidade bem perto onde posso abrigar-me. É uma cidade pequena e eu poderei refugiar-me nela. Permiti que eu o faça, e terei a vida salva”.
E o Senhor, compreensivo, retrucou:
“Concedo-te ainda esta graça. Não destruirei a cidade a favor da qual me pedes. Apressa-te e refugia-te, porque nada posso fazer antes que lá tenhas chegado”.
A cidade recebeu o nome de Segor, que significa “pequena”.
E aí esbarramos em outra história ilustrativa da Bíblia: Lot não quis ir para as montanhas, antes pediu para se mudar para uma cidade, ainda que pequena. Ou seja: rejeitava o nomadismo por completo. No velho estilo de vida, não sobreviveria. Precisava, desesperadamente, de uma cidade, qualquer que fosse, mas uma cidade.
No caminho para Segor, em meio ao deserto, ocorreu aquele incidente famoso: a mulher de Lot, cujo nome a Bíblia não cita, não resistiu à curiosidade e olhou para trás, desobedecendo o Senhor. Como o Senhor não admite desobediência, transformou-a em uma estátua de sal. Os cientistas acreditam que Sodoma e Gomorra tenham sido vitimadas pela erupção de um vulcão. O Mar Morto situa-se a 400 metros abaixo do nível do mar, o mais baixo local habitado em todo o planeta. Numa de suas margens, eleva-se um paredão de sal e calcário, com formas estranhas, algumas delas parecendo humanas. Uma dessas é apontada pelos moradores do lugar como a estátua da mulher de Lot.
Como nada na Bíblia está lá por acaso, eu aqui interpreto essa lenda como uma reprimenda à irresistível curiosidade que é característica do gênero feminino. Cuidado, garotas: certas descobertas podem transformá-las em estátuas de sal.
Enfim.
Curiosamente, na continuação desse capítulo do Gênesis, Lot sai de Segor por temer algum perigo não explicitado pelo autor, e vai se refugiar em uma caverna na montanha. Aí, no escuro da caverna, dá-se um incidente extraordinário que é tratado com inexplicável naturalidade pela Bíblia. Como não havia homem pelas imediações, as filhas de Lot traçaram um plano: embriagaram o pai e, de acordo com o autor, “dormiram” com ele, primeiro a mais velha, depois a mais nova, uma noite depois da outra. Cada uma gerou um filho: Moab, o pai dos moabitas, e Bem-Ami, pai dos amonitas. Um terrível caso de incesto, mas nem a Bíblia nem o Senhor tecem considerações a respeito.
E nós, o que entendemos que o autor quis dizer com essa história? Óbvio: que as mulheres fazem qualquer coisa para ter um filho. Mas existe outra conclusão subjacente. Note: Lot não queria ir para as montanhas, queria ir para a cidade. Sua opção foi pela Civilização. Quando teve que fugir da Civilização e se refugiar na caverna, o que aconteceu? Ele e sua família voltaram aos tempos selvagens do nomadismo. Um tempo em que até o incesto era praticado e aceito.
As aventuras dos patriarcas continuam palpitantes pelas páginas do Gênesis, repletas de mensagens para o gênero humano, até que ocorre um dos incidentes mais espantosos da Bíblia: Deus manda Abraão matar o próprio filho.
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