Cem anos depois de Champollion decifrar os hieróglifos sem nunca ter pisado no solo do Egito, o inglês Howard Carter, munido de pá e picareta, escavando incansavelmente na areia macia e quente do deserto, fez uma das maiores descobertas da história da arqueologia. Encontrou a tumba de Tutancâmon, uma das poucas que haviam se mantido a salvo dos ladrões de sepulturas. Não que eles não a tivessem descoberto e violado. O mausoléu de Tutancâmon foi conspurcado por pelo menos dois arrombamentos, mas, por algum motivo, os ladrões não conseguiram acessar os tesouros nem o cadáver do faraó.
Alguém pode achar que o roubo de câmaras funerárias egípcias foi um fenômeno de uma época em que o país entrou em decadência, quando os valores tradicionais não eram mais respeitados. Nada disso. Os ladrões de sepultura agiram desde sempre. Há registro documentado de uma violação em 2.100 a.C., quando o rei Mérikaré escreveu a seu filho:
“Travaram-se combates nos cemitérios e os túmulos foram pilhados. Eu próprio o fiz”.
Alguns ladrões detalharam por escrito o seu modus operandi. O relato abaixo, redigido mais de mil anos antes de Cristo, é tanto espantoso quanto esclarecedor, e não deixa de pingar um acento de cinismo quando chama as vítimas falecidas de “veneráveis”:
“Pegamos os nossos utensílios de cobre e escavamos um corredor na pirâmide tumular do rei (…) descobrimos a câmara subterrânea e descemos com archotes (…) encontramos a sepultura da rainha. Abrimos os sarcófagos e os caixões nos quais repousavam e encontramos a venerável múmia do rei, armado de uma espada em forma de uma pequena foice. Numerosos amuletos e joias de ouro rodeavam-lhe o pescoço. A máscara de ouro recobria-o. A venerável múmia do rei estava inteiramente revestida de ouro. Os caixões estavam decorados com prata e ouro (…) e cobertos de todas as variedades de pedras preciosas. Arrancamos o ouro. Encontramos a rainha no mesmo estado e também arrancamos tudo. Deitamos fogo aos caixões”.
Havia tanta pilhagem que alguns faraós ordenaram a remoção das múmias dos seus antecessores para locais secretos, a fim de proteger-lhes o descanso, que deveria ser eterno. Ou seja: assim como os egípcios tinham adoração reverencial pelos mortos e consideravam a morte outra etapa da existência, não hesitavam em violá-los, se enfrentassem alguma crise e precisassem de recursos. O que mostra que, em qualquer época, as necessidades materiais da vida se impõem aos valores imateriais. Que a dor física é mais forte do que a dor da alma.
O homem é um ser físico. Parece óbvio; não é. Um antigo vice-presidente dos Estados Unidos chamaria isso de uma verdade inconveniente. Porque, de certa forma, é uma verdade que reduz a dimensão da espécie humana. O homem gosta de acreditar que se move prioritariamente por valores intangíveis. Gosta de acreditar que é um ser nobre, diferente do restante dos animais do planeta por ser animado por vida espiritual.
Certo.
Agora pense no seu dedo mínimo, tão pequeno e insignificante que é chamado de “minguinho”. Você nunca tece reflexões sobre o minguinho, não é? Claro que não. Você pensa todos os dias nos seus cabelos, que ajeita a mirar-se no espelho e lava com xampu restaurador e besunta com gel; você talvez se aflija com os sulcos que os anos vão lhe cavoucando nas comissuras dos lábios e dos olhos, e nessa minúscula região também aplica cremes franceses que custam 50 Euros; você faz abdominais para enrijecer a barriga; você protege bem os pés com calçados elegantes, até porque, você sabe, a primeira peça do vestuário masculino na qual as mulheres reparam são os sapatos. Pois bem. Você está atento a todas as partes do seu corpo. Mas você nunca pensa no minguinho, nunca olha para ele, nunca dedica 10 segundos do seu dia a ponderar acerca do minguinho.
Bem.
Neste momento raro em que, devido ao parágrafo acima, você está pensando no seu minguinho, suponha que ele esteja doendo. Doendo muito por conta de alguma doença de minguinhos. O que acontecerá? Você só vai pensar no minguinho. Você não conseguirá fazer mais nada direito por causa do minguinho. Os lábios em forma de coração daquela morena, as elevações da vida religiosa, os prazeres inefáveis do saber e da cultura, os euros e os dólares todos, nada disso tem importância. Só o que importa é o seu dedo minguinho, o dedo minguinho é o suserano do seu ser, o dedo minguinho é o centro do mundo.
É por isso que você precisa evitar certas temeridades físicas. Dirigir em alta velocidade, fazer ultrapassagens perigosas, praticar acrobacias inúteis, saltar de para-quedas se não for para invadir a Normandia ou porque o avião está caindo, limpar janelas de edifícios sem corda de segurança, chamar uma mulher de gorda, todas essas, e outras tantas, são ações estúpidas que podem causar mutilações. Quer dizer: que podem profanar o seu corpo, e com isso, profanar a sua mente e acabar com a sua vida.
O homem é um ser físico.
Por mesquinhas necessidades físicas, os egípcios violaram os túmulos de seus antepassados e de seus reis mais respeitáveis.
A carne é forte, o espírito é fraco.
Mas não sejamos injustos com o povo egípcio, até porque o conceito de “povo” é abstrato. Qualquer “povo” é tão genérico e tão amplo que se torna disforme.
O povo brasileiro é cordial? Pode um povo cordial admitir que alguém seja enfiado numa pilha de pneus encharcados de gasolina para ser supliciado até a morte com fogo, como já ocorreu nos morros do Rio de Janeiro, num tipo de execução batizado debochadamente de “micro-ondas”?
O povo americano é belicista? Mas um povo belicista seria capaz de criar e promover um dos maiores movimentos pacifistas da História, como o movimento hippie?
O que se pode dizer do povo, de quaisquer povos, isto é, do homem comum e não-individualizado de qualquer parte do mundo, é que todos são iguais: o “povo” é crédulo, emotivo, supersticioso e influenciável. Ou seja: tocado pelos tais valores imateriais. No caso dos egípcios e suas velhas crenças, prova-o uma célebre e compassiva passagem da história da arqueologia da qual falarei mais adiante. Por ora, vamos sublinhar que nem todos os egípcios eram profanadores de cadáveres. E talvez por isso o sepulcro de Tutancâmon tenha conseguido manter-se mais ou menos intocado através dos milênios. Quando Howard Carter o descobriu, lá estavam os tesouros com que o faraó havia sido enterrado. Foi uma das grandes façanhas da arqueologia mundial de todos os tempos. Muito do que sabemos sobre os egípcios e, por conseguinte, sobre nós mesmos, se deve a Howard Carter.
A respeito de sua façanha imortal, Carter escreveu um pequeno livro, “A Descoberta da Tumba de Tut-Ankh-Amon”, à disposição em bom português, traduzido e prefaciado brilhantemente pelo brilhante Eduardo Bueno, o “Peninha”. Vou reproduzir o primeiro parágrafo da introdução escrita pelo Peninha, para você se situar nessa trepidante história:
“Em 1903, Howard Carter vivia precariamente na cidade do Cairo, capital do Egito. Sem dinheiro, sem amigos e enfraquecido por uma grave doença estomacal contraída depois de anos percorrendo os recantos mais abrasivos e insalubres do Egito, sobrevivia vendendo aquarelas nas quais retratava cenas e monumentos egípcios. De temperamento irascível, por vezes explosivo, olhar ameaçador e um bigode imperioso sob o nariz acentuadamente adunco, com certeza mais parecia um personagem de Conrad ou Kipling – um drifter, um autoexilado – do que o egiptólogo erudito que era. Na verdade, quem o encontrasse perambulando por mercados repletos de gente e moscas não poderia imaginar que, vinte anos mais tarde, Carter se tornaria o arqueólogo mais famoso da História – cuja fama, até hoje, só pode ser comparada à de Henrich Schliemann, o descobridor de Troia, ou a de Jean François Champollion, que decifrou os hieróglifos egípcios.”
Depois de realizado, um feito se torna simples. Talvez você imagine que, para descobrir um túmulo egípcio, bastaria dirigir-se até um cemitério, ou olhar para cima e identificar uma pirâmide que se elevava ao céu, ir até lá e fazer uma rápida exploração. Só que não é assim que funciona. A partir de 1.500 a.C. os egípcios pararam de erguer pirâmides e passaram a escavar os rochedos do Vale dos Reis para dentro deles construir galerias e câmaras que serviriam de sepulturas para os seus faraós.
Por que houve essa mudança?
Exatamente por causa dos ladrões de sepulturas. A fim de manter as múmias e seus tesouros a salvo dos violadores, os administradores egípcios camuflaram os túmulos das formas mais engenhosas. Esconderam-nos sob as areias do deserto e atrás de paredes de pedra. Se um arrombador descobrisse a entrada, poderia perder-se em um labirinto, ou então esbarrar em uma câmara aparentemente inconclusa que trazia, por trás de suas ruínas, outra câmara.
A propósito disso é que vou contar aquela história compassiva de que falei parágrafos atrás.
Aí vai:
No começo dos anos 80 do século 19, um grupo de arqueólogos europeus vivia e trabalhava no Egito com objetivo de descobrir, preservar e estudar as antiguidades do tempo dos faraós. Os europeus eram movidos pela febre da nova ciência da egiptologia, nascida da aventura dos savants de Napoleão e da descoberta de Champollion. Uma das angústias dos cientistas era o combate ao tráfico de antiguidades, prática comum dos habitantes dos lugarejos próximos ao Vale dos Reis. Seguindo a pista de um desses ladrões de sepulturas, o arqueólogo alemão Emil Brugsch-Bey fez uma descoberta tão sensacional que parece inverossímil, uma história que bem poderia virar roteiro de um filme de Indiana Jones.
O ladrão de túmulos, depois de desmascarado pelos cientistas, foi levado à presença das temíveis autoridades muçulmanas do Egito. Como tentar ludibriar temíveis autoridades muçulmanas é temível, ele acabou concordando em mostrar o local de onde subtraía as antiguidades que vendia. O cientista que o acompanhou foi, exatamente, Emil Brugsch-Bey. Na madrugada de 5 de julho de 1881, Brugsch, seu auxiliar árabe e o ladrão de túmulos encaminharam-se para o deserto. Escalaram um monte com grande dificuldade e, depois de um percurso acidentado, o ladrão apontou para uma abertura na rocha muito bem disfarçada por pedras. Aquele lugar permanecera intocado por mãos humanas durante mais de três mil anos. O ladrão tirou uma corda que levava enrolada nos ombros e disse a Brugsch que ele devia descer com ela pela abertura. Brugsch fez como o indicado, não sem algum temor. O que ele encontraria no escuro lá embaixo? Poderia confiar no ladrão que ficava lá em cima?
O arqueólogo desceu 11 metros pela corda, chegou ao solo e acendeu uma tocha. Avançou alguns passos e, então, deparou com o inacreditável. Diante dele, dispostos em desordem, estavam ataúdes, múmias e objetos dos maiores soberanos do Egito Antigo. Ali jaziam os corpos de Amósis I, Tumés III e o próprio Ramsés II, o Grande, talvez o mais poderoso rei do Egito em todos os tempos. Ali estavam outras dezenas de múmias, 40 ao todo, e objetos que deviam acompanhar os faraós na sua viagem para o Além.
O esconderijo havia sido descoberto seis anos antes pelo ladrão de túmulos. Durante todo esse período, ele sua família enriqueceram vendendo com parcimônia as antiguidades tiradas do lugar. O segredo era partilhado por praticamente toda a comunidade em que vivia o ladrão. Todos se beneficiavam de alguma forma dos despojos dos faraós, num tardio arranjo de distribuição de renda entre os ricos mortos e os pobres vivos.
Brugsch emergiu do esconderijo encantado e preocupado: se deixasse as múmias no local, elas decerto seriam atacadas pelos ladrões, ansiosos por obter o derradeiro faturamento com as antiguidades. O que fazer? Tomou uma decisão rápida. Recrutou 300 operários e, em seis dias, levou as múmias, os sarcófagos e os objetos que os circundavam para um navio, a fim de transladar tudo para o Museu do Cairo. Ocorre que, nessa semana de trabalho, a notícia da mudança dos corpos dos faraós correu entre a população das aldeias do entorno. No dia em que o navio zarpou, deu-se o inusitado: camponeses e artesãos, homens, mulheres, crianças e velhos se perfilaram nas duas margens do Nilo e acompanharam o barco rio abaixo numa procissão de desesperados. Os homens atiravam para o alto com seus revólveres e espingardas, as mulheres gritavam e choravam, esfregavam a areia do deserto nos rostos pardos, atiravam os braços para o céu azul. Todos abanavam aos prantos para seus antigos reis, que iam embora para sempre. A cena era tão triste e, ao mesmo tempo, tão poderosa, que Emil Brugsch teve de virar o rosto para não se deixar comover.
O povo também é capaz de manifestações de cunho moral e desinteressado.
Nesse mesmo Vale dos Reis, Howard Carter encontrou a múmia de Tutancâmon e seus tesouros, que se mantiveram intactos por mais de 3.300 anos.
O que Tutancâmon fez de tão importante para merecer a posteridade?
Por que a descoberta de seu túmulo foi tão impactante?
Você saberá no próximo capítulo.
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