O marido dela era traficante. Tipo perigoso. De andar com tresoitão na capanga. De cortar desafeto a navalha. Mau mesmo. A gurizada aconselhava:
- Te afasta dessa dona, Ulisses…
Também tinha um pouco de ciúme. Ninguém era experiente em lides do amor na turma. Dois ou três já haviam se cevado nas carnes de umas caixas do supermercado ali perto, é verdade. Só que tudo muito rápido, apressado, mãos canhestras lutando contra fechos no escuro do corredor.
O Ulisses, não. O Ulisses agora andava todo pimpão pela vila. Havia sido escolhido por ela. Por que, não se sabia. O Ulisses era guri ainda. Guri de buço, que aquilo não era bigode. Guri bobo, como todo guri. E pequeninho. Metro e meio, embora jurasse um e sessenta.
Mesmo assim, ela botou os olhos nele, e sorriu para ele, e num vem cá levou-o para o apartamento onde vivia com o marido. Que não estava, claro. Na certa viajando para comprar mercadoria. Ou vender, sabe- se lá.
Mulher feita, ela. Talvez 28, 29, ou até trintona. Mas muito bem, tudo em cima. Linda. Pegava o Ulisses e fazia… coisas com ele. Ele nunca dizia que tipo de coisas, só dizia assim: “coisas”.
- Cada coisa… – e suspirava.
A turma pedia detalhes, ele nada. Só sorria, enigmático. A turma na maior ciumeira, também querendo uma mulher daquelas. Querendo qualquer mulher.
Ela mimava o Ulisses. Dava-lhe presentes. Um dia, ele apareceu com uma camisa importada, tecido molinho, coloridão, brilhoso, troço que não existia em Porto Alegre naquele tempo.
- Que camisa! – a turma se admirava.
O Ulisses não tirava mais a camisa.
O irmão dele, o Serginho, era quem mais o censurava.
- Lice! – falava Ulisses assim, Lice. – Lice, tu tem que largar essa mulher. O cara vai te pegar. Vai te matar. O cara é uma fera.
O Ulisses nem aí, espanando com a mão uma poeira imaginária da camisa bonitona. O Serginho se afligia. Tinha pensado até em contar para a mãe, mas a turma convenceu-o que não, ia ser pior, Dona Mara era capaz de fazer escândalo. No verão, ela e o marido foram para Capão da Canoa. Pois sabe o que ela fez? Botou o Ulisses num hotel. Nossa, aí sim que ele embobeceu. A gurizada toda em barraquinhas de lona, no camping, e o Ulisses no bembom, cama grande de casal, disse ele que até com ar-condicionado, mas nisso ninguém acreditou, ar-condicionado também já era demais.
Davam um jeito de se encontrar todas as tardes. No hotel, no apartamento, na areia da praia. O Serginho apavorado:
- Lice…
Até que, uma tarde, aconteceu. O marido fora para Porto Alegre. Ela chamou o Ulisses. Ele refestelado no sofá, sorvendo uma cervejinha gelada. Ela preparava acepipes na cozinha. E:
Barulho na porta. Na fechadura. O Ulisses sentou de um pulo. Ficou teso, olhando para a maçaneta que tremia. Com mil panturrilhas lisas de morenas, o que devia fazer? Atirar-se pela janela, impossível. Estavam no sexto. Esconder-se onde? Olhou para lá, olhou para cá. Não dava tempo. A porta já se abria. O marido entrou.
A cena era medonha. O Ulisses ainda sentado no sofá, copo de cerveja na mão, pálido, em pânico, fitando o marido parado na entrada da sala, as mãos na cintura. Ela chegou da cozinha, secando as mãos num pano de prato. Abriu a boca, espantada.
- Que é isso? – berrou o marido, apontando para o Ulisses. O Ulisses não era esse; era isso. Menos que alguém. Isso.
Ela riu. Como conseguia rir naquela situação? Correu para o marido.
- Querido! Que surpresa maravilhosa! Resolveu ficar?
- Tive de voltar – resmungou ele, sem tirar os olhos do Ulisses. – Tu ainda não me disse o que é isso.
- Ah. Isso é um menino lá da vila – ela também isso. – Ele vai me ensinar matemática. Tu sabe que eu quero fazer o supletivo.
O marido não desgrudava os olhos desconfiados do Ulisses.
- Tu é bom em matemática? – gritou.
O Ulisses, se pondo de pé rapidinho:
- S-sou…
- Qualé a fórmula de Báscara?
- Hein?
- A fórmula de Báscara!
O Ulisses não sabia o que falar. Ficou mudo, paralisado, no meio da sala. Até que o marido deu dois passos, aproximou-se dele. Urrou:
- Fora daqui!!!
O Ulisses não vacilou. Contornou o marido, esgueirou-se para fora, enquanto o monstro repetia “fora daqui!”, “fora daqui!” Estava já saindo, já estava na rua, quando sentiu o chute nas nádegas. Não doeu. Não nas nádegas. As nádegas ficaram intactas. A alma, sim. A alma gemia de humilhação. Pior que ele achou ter ouvido uma risadinha dela. Será que ela havia dado mesmo uma risadinha?
O Ulisses encontrou a turma no camping. Contou tudo, suando e tremendo, enquanto o Serginho:
- Eu avisei, Lice. Mas ainda bem que acabou assim. Tu continua inteiro.
- Não acabou! – a voz do Ulisses tremia de paixão. – Não acabou! Eu amo essa mulher! Amo! Vou fugir com ela! Juro!
- Lice… – Não acabou!!!
Tinha acabado. Ao voltar para o hotel, Ulisses foi informado de que sua conta havia sido encerrada. Teve de ficar no camping com os guris. Nos dias seguintes, tentou falar com ela. Ligava. Rondava o apartamento. Mas que nada. Ela não o recebia. Ela não atendia. Ela não queria mais saber do Ulisses. Como podia tê-lo esquecido? Um amor tão lindo. Tanta intimidade. Afinal, eles faziam coisas.
Nunca o Ulisses ficou tão triste. Tão mal. Não comia. Não jogava bola com a turma. Não ia à praia. A recuperação levou dias. Semanas. Foi se conformando muito aos poucos. Um processo dolorido. Vez em quando, ele suspirava:
- Ela deve estar com medo. Vai voltar pra mim. Vai voltar.
Não voltava. Não voltou.
Lá pelo fim do verão o Ulisses parou de rondar o apartamento dela. Depois do Carnaval, tornou a sorrir. A olhar para outras mulheres. Perto de março ele já era o velho Ulisses brincalhão. A confiança retornava a circular pelas suas veias. Parecia que voltaria à vida. Parecia que tudo daria certo.
Aí o Serginho apareceu com uma linda camisa importada.
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