Virgínia Rodrigues é fotógrafa e catarinense. Foi à África do Sul atrás de uma vaga para ensinar inglês. Ela já tinha a ideia de oferecer uma oficina de fotografia, e sugeriu que o Kids Haven introduzisse suas aulas como projeto de educação artística. Além de aceitar, a escola conseguiu algumas câmeras.
O projeto Kids Haven é dividido em 3 partes. Existe a escola, onde fica a creche e a bridge school (que como o nome sugere, é uma ponte para crianças que não conseguem acompanhar o curso normal das escolas públicas por dificuldades de aprendizado ou como muitos, não falarem inglês por virem de países muito pobres). O abrigo, onde moram em torno de 70 crianças, e todos os voluntários. Elas estão lá por motivos diversos: algumas são órfãs, outras têm pais alcoólatras, outras sofreram algum tipo de abuso, algumas são HIV positivo e a família não tem condição de dar o tratamento adequado. E por fim, existe o acompanhamento de crianças nas ruas.
No momento, além de Virginia, exitsem também outros três voluntários alemães. Ela fala um pouco da experiência de estar ensinando algo novo para crianças tão carentes e da relação que ela observou deles com o futebol. Veja as belas fotos que ela nos enviou.

Fotos: Virgínia Rodrigues
1) Por que escolheu ir trabalhar com crianças da África do Sul?
Sempre quis conhecer o continente africano e tive uma relação intensa com a cultura afro. Existe uma história interessante na minha família de que um ancestral do meu avô materno, no século 19, casou-se com uma escrava após se perder no mato na região de Angelina, ao fazer a promessa de que casaria com a primeira mulher que encontrasse se saísse de lá. Desde pequena vejo meu pai tocando atabaque e agogô, e Iemanjá fazendo festa no ladinho de São Gonçalo no altar ecumênico de casa. Sou apaixonada pelo trabalho de Pierre Verger, estou buscando um trabalho documental em fotografia e todos os caminhos me trouxeram pra cá. Tive a sorte de visitar uma de suas exposições no meio de Pelourinho em 2009. No princípio estava me organizando pra ir pra Uganda, mas complicações me fizeram mudar o destino e optei vir pra África do Sul; o que foi ótimo, pois aqui tenho conhecido gente do continente inteiro.

2) Quais foram as dificuldades desde que você chegou?
A língua. Haviam me dito que todos falam inglês por aqui, o que é verdade. O problema é que entre eles, só se comunicam em zulu, então nunca dá pra saber sobre o que estão conversando. Outra coisa é que por aqui até pra fazer coisas cotidianas como ir na farmácia preciso da companhia de um homem. Não sei se por medida exagerada de preocupação com os voluntários, ou se realmente há todo esse risco, mas prefiro não descobrir. Quando vamos para as townships precisamos estar acompanhados de moradores locais, e nelas realmente se sente que o clima é pesado.

3) Você observou a relação das crianças com o futebol? como ela é?
É a mesma que no Brasil. Igualzinha, sem tirar nem pôr. Fiz uma atividade interessante com minha turma de fotografia da bridge school que é composta por 8 meninos e somente uma menina. Pedi que eles fotografassem algo que representasse o que eles gostariam de ser no futuro. Ao receber as câmeras de volta, bolas de futebol em todos os cartões de memória, até mesmo no da menina. É o sonho da criança pobre, seja aqui ou aí do outro lado do Atlântico. Quando digo que sou brasileira, os olhos delas brilham, perguntam se conheço o Kaká, o Ronaldinho e o Neymar. No começo era sincera e dizia que não me importada com futebol, mas a galera ficava tão desapontada que comecei a dizer que torço pro Santos, e que até já dei um abraço no tal Neymar no aeroporto. Ficam loucos. Trouxe comigo uma camiseta da seleção de 94 (que era um vestido pra mim na época), e toda vez que visto algum moleque pede que eu deixe de presente quando voltar pro Brasil.

4) Você vê alguma herança da Copa do Mundo na África do Sul?
Não tive a oportunidade de sair muito do círculo da escola e só vi o Soccer City de longe. Mas assim, pelo olhar das crianças, o rastro que a Copa deixou pra elas foi extremamente positivo. Talvez um incentivo pra que empresas invistam mais no esporte, pra que assim os clubes cresçam, surjam novos bons ídolos pra essa rapaziada.
5) Na sua opinião, qual é o papel do futebol na vida de algumas dessas crianças?
Representa o sonho de sair das townships. A chance de ganhar dinheiro e viajar o mundo. Os professores de educação física da escola só ensinam futebol. Ele ajuda a manter o corpo e a cabeça das crianças ativos, longe dos problemas das ruas e muitas vezes, infelizmente, de casa.

6) Alguma criança tem uma história impactante?
A maioria. Mas a que mais me impressiona é a de um aluno meu na bridge school. Ele mora na rua, tentaram levá-lo pro abrigo diversas vezes e ele nunca quis. Surpreendentemente ele é o melhor da turma em matemática, lê bem, escreve bem e fala um inglês ótimo sem nunca ter ido pra escola regular. É criativo e faz fotos bem legais, entende rápido os exercícios. Quando perguntei porque ele morava na rua, ele foi muito esclarecedor na resposta: “-Porque sim.” O sonho dele é ser jogador de futebol.