A desejada das gentes
A história por trás da história não é necessariamente uma experiência de primeira mão. Às vezes o escritor não se inspira no que aconteceu, mas no que alguém diz que aconteceu. Ou seja, para alguns autores a fonte da escrita não é o que eles vêem, mas o que eles lêem. Nas histórias de Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), o leitor tem a sensação de partilhar da biblioteca do autor – que a relação entre ele e o escritor não é vertical, mas horizontal. No caso de “A desejada das gentes”, por exemplo, percebe a presença de Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe. A narrativa romântica funciona como uma base sobre a qual Machado constrói o conto — a história em cima da história -, num movimento que o leitor tem a impressão de que pode continuar infinitamente.
“Ah! conselheiro, aí começa a falar em verso.” O problema de se usar hoje a expressão “história de amor” para qualificar um texto é que o conceito foi contaminado por décadas de telenovelas e comédias infames de Hollywood com gente que tem encontros charmosos em restaurantes maneiros e se engasgam com a comida. Para se ter uma idéia de como o que já se considerou artístico ao tratar o amor mudou — a idéia literária de amor, não o amor propriamente dito —, vale a pena conferir a coletânea Contos de Amor do Século XIX (Companhia das Letras, 568 páginas, R$ 47). Organizada pelo argentino Alberto Manguel, que preparou para a mesma editora a coletânea Contos de Horror do Século XIX, o livro é um passeio por uma mentalidade amorosa mais grave, de um romantismo mais denso e pesado, uma época que, não por acaso, formou Sigmund Freud e forneceu o clima para sua teoria da relação entre Eros e Thanatos. São 26 os contos reunidos no volume. Dentre os autores, prosadores de acionalidade alemã, argentina, canadense, escocesa, espanhola, francesa, inglesa, italiana, norte-americana e russa. Portugal comparece com o conto O Defunto, de Eça de Queiroz, e o Brasil, com A Indesejada das Gentes, de Machado de Assis (esse do qual vocês leram um trechinho aí em cima).
“Todos os homens devem ter uma lira no coração – ou não sejam ho-
mens. Que a lira ressoe a toda a hora, nem por qualquer motivo, não o digo eu; mas de longe em longe, e por algumas reminiscências particulares… Sabe por que é que lhe pareço poeta, apesar das Ordenações do Reino e dos cabelos grisalhos? é porque vamos por esta Glória adiante, costeando aqui a Secretaria de Estrangeiros… Lá está o outeiro célebre… Adiante há uma casa…”
“Vamos andando.”
“Vamos… Divina Quintília! Todas essas caras que aí passam são outras, mas falam-me daquele tempo, como se fossem as mesmas de outrora; é a lira que ressoa, e a imaginação faz o resto. Divina Quintília!”
“Chamava-se Quintília? Conheci de vista, quando andava na Escola de Medicina, uma linda moça com esse nome. Diziam que era a mais bela da cidade.”
“Há de ser a mesma, porque tinha essa fama. Magra e alta?”
“Isso. Que fim levou?”
“Morreu em 1859. Vinte de abril. Nunca me há de esquecer esse dia. Vou contar-lhe um caso interessante para mim, e creio que também para o senhor. Olhe, a casa era aquela… Morava com um tio, chefe de esquadra reformado; tinha outra casa no Cosme Velho. Quando conheci Quintília… Que idade pensa que teria, quando a conheci?”
“Se foi em 1855…”
“Em 1855.”
“Devia ter vinte anos.”
“Tinha trinta.”
“Trinta?”
“Trinta anos. Não os parecia, nem era nenhuma inimiga que lhe dava essa idade. Ela própria a confessava e até com afetação. Ao contrário, uma de suas amigas afirmava que Quintília não passava dos vinte e sete; mas como ambas tinham nascido no mesmo dia, dizia isso para diminuir-se a si própria.”
“Mau, nada de ironias; olhe que a ironia não faz boa cama com a saudade.”
“Que é a saudade senão uma ironia do tempo e da fortuna? Veja lá; começo a ficar sentencioso. Trinta anos; mas em verdade não os parecia. Lembra-se bem que era magra e alta; tinha os olhos, como eu então dizia, que pareciam cortados da capa da última noite, mas apesar de noturnos, sem mistérios nem abismos. A voz era brandíssima, um tanto apaulistada, a boca larga, e os dentes, quando ela simplesmente falava, davam-lhe à boca um ar de riso. Ria também, e foram os risos dela, de parceria com os olhos, que me doeram muito durante certo tempo.”
“Mas se os olhos não tinham mistérios…”
“Tanto não os tinham que cheguei ao ponto de supor que eram as portas abertas do castelo, e o riso o clarim que chamava os cavaleiros. Já a conhecíamos, eu e o meu companheiro de escritório, o João Nóbrega, ambos principiantes na advocacia, e íntimos como ninguém mais; mas nunca nos lembrou namorá-la. Ela andava então no galarim; era bela, rica, elegante, e da primeira roda. Mas um dia, no antigo Teatro Provisório, entre dois atos dos Puritanos, estando eu num corredor, ouvi um grupo de moços que falavam dela, como de uma fortaleza inexpugnável. Dois confessaram haver tentado alguma coisa, mas sem fruto; e todos pasmavam do celibato da moça, que lhes parecia sem explicação. E chalaceavam: um dizia que era promessa até ver se engordava primeiro; outro que estava esperando a segunda mocidade do tio para casar com ele; outro que provavelmente encomendara algum anjo ao porteiro do céu; trivialidades que me aborreceram muito, e da parte dos que confessavam tê-la cortejado ou amado, achei que era uma grosseria sem nome. No que eles estavam todos de acordo é que ela era extraordinariamente bela; aí foram entusiastas e sinceros.”
“Oh! ainda me lembro!… era muito bonita.”
“No dia seguinte, ao chegar ao escritório, entre duas causas que não vinham, contei ao Nóbrega a conversação da véspera. Nóbrega riu-se do caso, refletiu, e depois de dar alguns passos, parou diante de mim, olhando, calado. – Aposto que a namoras?, perguntei-lhe. – Não, disse ele, nem tu? Pois lembrou-me uma coisa: vamos tentar o assalto à fortaleza? Que perdemos com isso? Nada; ou ela nos põe na rua, e já podemos esperá-lo, ou aceita um de nós, e tanto melhor para o outro que verá o seu amigo feliz. – Estás falando sério? – Muito sério. – Nóbrega acrescentou que não era só a beleza dela que a fazia atraente. Note que ele tinha a presunção de ser espírito prático, mas era principalmente um sonhador que vivia lendo e construindo aparelhos sociais e políticos. Segundo ele, os tais rapazes do teatro evitavam falar dos bens da moça, que eram um dos feitiços dela, e uma das causas prováveis da desconsolação de uns e dos sarcasmos de todos. E dizia-me: – Escuta, nem divinizar o dinheiro, nem também bani-lo; não vamos crer que ele dá tudo, mas reconheçamos que dá alguma coisa e até muita coisa – este relógio, por exemplo. Combatamos pela nossa Quintília, minha ou tua, mas provavelmente minha, porque sou mais bonito que tu.”
“Conselheiro, a confissão é grave; foi assim brincando…?”
“Foi assim brincando, cheirando ainda aos bancos da academia, que nos metemos em negócio de tanta ponderação, que podia acabar em nada, mas deu muito de si. Era um começo estouvado, quase um passatempo de crianças, sem a nota da sinceridade; mas o homem põe e a espécie dispõe. Conhecíamo-la, posto não tivéssemos encontros freqüentes; uma vez que nos dispusemos a uma ação comum, entrou um elemento novo na nossa vida, e dentro de um mês estávamos brigados.”
Nessa profusão de autores e idiomas nota-se um fio condutor que liga os contos: a idéia de amor não como um instrumento de redenção, mas de transtorno, doença, privação de sentidos. Além da sempre retomada relação entre o amor e a morte, entre o sentimento e o martírio. O ciúme como uma força corrosiva está presente no fantástico Uma Paixão no Deserto, uma das menos conhecidas histórias curtas do prolífico Balzac, no qual um soldado francês se apaixona por uma pantera, ou no conto de Goethe no qual um negociante genovês se perde em uma paixão pela Cantora Antonelli, que dá título à narrativa.
Uma seleção magistral para lembrar que histórias de amor não precisam terminar com correrias em aeroportos ou estações de trem.
Não precisam nem terminar.
Postado por Carlos André Moreira
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