Uma cidade não se constrói apenas com pedra e asfalto, mas com representações. Nesse sentido, examinar a maneira como os escritores retrataram Porto Alegre é também fazer um passeio elíptico pela imagem que a própria Capital faz de si mesma. É também reencontrar, ainda que na imaginação, uma Porto Alegre apenas entrevista nas ruínas urbanas que uma cidade em crescimento constante deixa atrás de si.
As representações urbanas da cidade no século 19 tendem a enfatizar seu caráter de sociedade paroquial, um lugar que, embora grande em comparação às demais do Estado, ainda é uma comunidade de poucos habitantes e ritmo ameno. A concepção da Porto Alegre do século 19 e início do 20 como uma joia da Belle Époque é um clichê recorrente da literatura que se ocupou da cidade, e parece ter origem já nas obras daquele período, como no romance O Perdão, de Andradina de Oliveira (1878-1935), uma história de adultério que faz seus personagens passearem pela cidade em 1910, nascente metrópole com seus bondes, confeitarias chiques, fábricas, banda marcial e iluminação elétrica:
O bond parava de novo. Entrou um velho baixote, de roupa de brim pardo, chapéu de palha preto ficando russo, e um pala de inverno surrado.
– Ora, salvou-se uma alma do purgatório hoje! – exclamou outro velho, espigado, magro a mais não ser, com um pescoço de girafa, vermelho e pelancudo, olhos pretos, pequeninos e vivos, e sobrancelhas grisalhas, grandes, crespas. E como se fosse um poste enfiado num terno cor de cinza, atroou para o velhote:
– Então, seu Zé Silveira, sempre se resolveu a dar um nicolau à companhia Carris Urbanos, hein? – e apertou fortemente a mão do outro que se sentara a seu lado, segurando sempre, ao ombro, o pala seboso. – É a primeira vez que o vejo de bond.
– Caminhar a pé é bom para a saúde, seu Nicácio.
– E para o bolso, seu Zé.”
(O Perdão, Andradina de Oliveira)
Significativamente, Porto Alegre começa a ganhar espaço não só como pano de fundo, mas como cenário ficcional com caráter próprio, em simbiose com seus personagens, a partir dos anos 1930, quando a cidade também passa por um surto de expansão física e modernização urbana e tecnológica. Clarissa, de Erico Verissimo (1905 – 1975), um dos marcos dessa explosão urbana moderna na literatura do Estado, é de 1933. Os Ratos, de Dyonélio Machado (1895 – 1985), outro romance inaugural, é de 1935. O mesmo período de meados da década de 1930 testemunha a abertura da Avenida Borges de Medeiros e a construção do Viaduto Otávio Rocha – obras públicas de grande envergadura com as quais, lembra a arquiteta Cláudia Pilla Damásio em sua dissertação Porto Alegre na Década de 30: Uma Cidade Idealizada, Uma Cidade Real, a intendência municipal, de inclinação positivista, dedicava-se a um projeto de modernização de Porto Alegre. É o mesmo período em que Erico desenvolverá o seu “Ciclo de Porto Alegre”, inaugurado com Clarissa e encerrado com O Resto é Silêncio, de 1943.
– Embora se contem exemplos anteriores de literatura urbana, não é uma coisa significativa. A figura chave é mesmo a partir daquele momento. No Erico, com Clarissa, a cidade faz parte da experiência dos personagens, o modo como eles agem é condicionado pelos espaços do município em que atuam. A cidade no Erico não é só pano de fundo, é personagem – comenta a professora da UFRGS Regina Zilberman, autora de A Literatura no Rio Grande do Sul.
Erico apresenta uma visão ao mesmo tempo lírica e melancólica da cidade, descrita com a exuberância visual e plástica com que o autor construía os cenários de seus romances. É uma descrição de um autor maravilhado ele próprio com a Porto Alegre que se ergue a seu redor. Como apontou um dos primeiros críticos de Caminhos Cruzados, Dante Costa, a descrição que Erico faz da cidade “é uma espécie de exposição enternecida do quotidiano, com comentários e poesia. Assim como se o autor,de repente, se alçasse sobre a vida, e de uma distância breve, que permitisse a visão geral e também a sinuosidade dos detalhes, nos mostrasse o que acontece“.
Uma das cenas mais impactantes da obra de Erico vale-se desse mesmo recurso. É a morte de uma jovem no capítulo inaugural de O Resto é Silêncio, nascida de um suicídio real testemunhado pelo autor em 1941 na Praça da Alfândega:
Logo depois que o sol desapareceu, aquela praça ali no centro da cidade teve um minuto de esquisita beleza. As lâmpadas estavam ainda apagadas. Os anúncios de gás néon riscavam de coriscos coloridos as capotas dos automóveis parados junto da calçada. Quem olhasse para o lado do poente veria – silhuetas de casas, torreões, cúpulas, postes, cabos e armações de aço – uma escura massa arroxeada contra o gelo verde do horizonte.
Sons de buzinas distantes e de raras vozes humanas subiam amortecidos na atmosfera de paina. Tinha-se a impressão de que os passantes esqueciam seus cuidados e propósitos, compreendiam que naquele instante eram apenas elementos dum quadro. Moviam-se sem pressa, numa calma silenciosa: andavam de leve, como que flutuando no ar.
Mas a cena durou apenas um rápido minuto. Acenderam-se os combustores, e de repente algo de inesperado aconteceu. Uma rapariga precipitou-se do décimo terceiro andar do edifício Império, deu uma viravolta no ar e caiu hirta e de pé contra as pedras do calçamento, produzindo um ruído seco e agudo, que ecoou no largo como um tiro de pistola.
(O Resto é Silêncio, Erico Verissimo)
Já Dyonélio desce o olhar ao rés-do-chão para flagrar as figuras miúdas esmagadas pelo processo de urbanização. O crescimento de uma cidade capitalista nos moldes modernos exige uma multidão de trabalhadores anônimos engajados em sua construção – homens como o atormentado Naziazeno de Os Ratos. A Porto Alegre que emerge do romance é ao mesmo tempo mais difusa e mais crua do que a dos romances de Erico – poucas são as passagens de fato descritivas, e nenhuma delas com a exuberância plástica vista em O Resto é Silêncio ou Caminhos Cruzados. Dyonélio coloca o elemento central do capitalismo como o gatilho que faz se movimentar a trama de Os Ratos: o dinheiro, que não está só no centro do drama de Naziazeno, desesperado para arranjar dinheiro para o leite, mas em toda a cidade, repleta de comércio miúdo, operários, malandros, viradores e obras. Como afirma Cláudio Cruz em seu estudo fundamental sobre a literatura do período Literatura e Cidade Moderna, Dyonelio,”sem utilizar-se da descrição tradicional e empregando pequenas e breves indicações, situa firmemente suas ações em espaços bastante representativos da cidade real“:
É a segunda vez que consulta o relógio da Prefeitura esta manhã. Esse relógio, lá no alto, na torre, parece-lhe uma cara redonda e impassível…
Já pôs o pé na calçada do mercado. O ‘café do Duque’ fica na outra esquina. Toda essa calçada é uma sombra fresca e alegre, cheia de passos, de vozes. Quando defronta o portão central, abre-se-lhe, lá dentro, uma perspectiva de rua oriental, cheia de bazares, miragem remota de certas gravuras… ou de certas fitas… que viu. Não enxerga o Duque nos lugares habituais… E, entretanto, é a “hora dele”. Vai ficar por ali, pelas portas, alguns minutos.
Ele não poderá tardar. Nunca deixa de ir a esse café. Só por doença.
Naziazeno bem que sentaria.
Quem sabe?… talvez haja um conhecido nalguma mesa… Olha!… lá no fundo!… o Carvalho… Mas desvia vivamente a cara, faz que não vê o Carvalho. E esse seu gesto lhe traz à lembrança um gesto semelhante, essa manhã, com o Fraga… Está vendo, nitidamente, o Fraga na porta da casa, bronco e sorridente.
Ele, por sua vez,’teria’ de fazer-lhe uma cara de riso também. Depois, a mulher sabendo tudo pelas crianças e contando-o ao marido… e o Fraga deixando cair quase até ao grosso ventre uns beiços moles de espanto…
(Os Ratos, Dyonélio Machado)
A elevação da cidade ao protagonismo da ficção gaúcha logo estabelece também as bases para um romance histórico que trate não do mítico passado guerreiro do pampa, mas da própria constituição do espaço urbano. É o que fará Darcy Azambuja (1903 – 1970), que passou à posteridade mais por sua trajetória como jurista e teórico do Direito – seus livros na área são reeditados até hoje, diferentemente de suas investidas na ficção. Seu Romance Antigo, publicado em 1940, reimagina, com minuciosa pesquisa, a Porto Alegre de 1816, ainda uma aldeota do reino português, em que a chegada de notícias do grande mundo dependia de viajantes e pregões rua afora:
Mandava o governador que a Câmara organizasse um bando, em que ele próprio se incorporaria, para anunciar à vila a morte da Rainha. Uma hora depois o extenso cortejo do bando saía do Palácio, na Praça da Matriz, entrada na Rua Pecados Mortais*, e descia para a Rua da Praia.
(…) Os sinos da Matriz, das Dores e dos Passos plangiam lugubremente no ar calmo da tarde de abril. Nas residências mais importantes, os postigos das janelas estavam cerrados; nas humildes, gente sem protocolo metia através das portas a cara curiosa para o bando. Não raro, alguns apontavam a figura imponente do governador e diziam, numa admiração desrespeitosa: Olha, até o Diabo Coxo vai de charola!
Nos pontos mais centrais o bando estacava, o andador da Igreja da Matriz fazia tatalar a matracar, o procurador
da Câmara adiantava-se e lia, em um pergaminho de onde pendiam longas fitas negras, a notícia da morte de D.Maria I, rainha de Portugal, Brasil e Algarves,que Deus chamou à Sua Santa Glória – Orai por ela.
* Rua Bento Martins
(Romance Antigo, Darcy Azambuja)
Também Luiz Antonio de Assis Brasil se ocupará da Porto Alegre histórica em mais de um romance, particularmente no melancólico Um Quarto de Légua em Quadro, um relato antiépico das origens do povoamento da região, e Cães da Província, mordaz retrato que vai na contramão da autoimagem de uma Porto Alegre Belle Époque, como mencionado antes:
A cabeça da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul é um promontório elevado que avança rio adentro, no sentido Leste-Oeste, não mais. No lado norte, o mais protegido, aquele que as pessoas escolheram para morar, estão as casas de residência, as lojas, os arsenais, as boticas, os seleiros, os correeiros e toda gente que trabalha no ímpeto de formar aqui uma grande cidade, flor e orgulho do Império, reluzente marco da presença brasileira nestas meridionais solidões. As casas e as ruas esparramam-se a deus-dará, desobedecendo quase por método às ordens de um famoso capitão Montanha, homem que em certa era e certo dia disse: “Aqui vai ser a rua principal, depois as outras serão paralelas e perpendiculares”, aplastando a ignorância dos primeiros moradores com tantas palavras difíceis. Imagine, o capitão Montanha querendo ser um novo Rômulo que com seu arado demarcou os limites da velha Roma, no tempo das antiguidades. As ruazinhas espremem-se e se chocam, caindo a ribanceira bem ao modo português, as moradias correndo parelhas umas às outras e tão grudadas que da casa em frente se ouve o que se fala aqui, é só apurar os ouvidos.
(Cães da Província, Luiz Antonio Assis Brasil)
Outro autor que, mesmo afastando-se por vezes no tempo e no espaço, tornou Porto Alegre um tema recorrente de sua ficção foi Moacyr Scliar, que pintou a cidade com tons oníricos e humorísticos num bom número de seus romances e contos – mais especialmente A Guerra no Bom Fim, Os Mistérios de Porto Alegre, O Centauro no Jardim, O Exército de um Homem Só e Os Voluntários:
Se não me engano, eu achava aquilo tudo muito interessante, muito bonito, mas, se estou bem lembrado, naquele momento eu pensava em outra coisa, pensava mesmo era em mulher. 1952? 1953? Em mulher. Só em mulher. E poderia pensar em outra coisa? NaVoluntários da Pátria?
Eu ajudava meu pai no bar até as sete, oito horas da noite, e então ia jantar. A esta hora os operários, os caixeiros, os funcionários já tinham ido para casa. De seus quartos nos velhos sobrados as mulheres começaram a emergir. Caminhavam lentamente, equilibrando-se nos altos saltos; ou então postavam-se nas esquinas, encostadas, à parede. Ou ficavam sentados no interior de bares sombrios, os olhos reluzindo na semi-obscuridade. Aquilo regurgitava de mulheres. Um rápido exame da geografia sensual de Porto Alegre mostraria uma cidade ocupada por esse amável exército. Na Pantaleão Telles, junto à ponte de pedra em que os Farrapos travaram furiosas batalhas. Um numeroso contingente entrincheirado nas casinhas da Cidade Baixa. Na Azenha, Cabo Rocha era um importante reduto. No Cristal, Mônica reinava solitária e esplêndida, com seu luxo, seu Quarto de Espelhos.Mas havia ainda lugares mais fantásticos: O Cabaré das Normalistas, onde, segundo a lenda porto-alegrense,as moças deixavam cair a máscara da inocência.(…)
Delírio à parte, o principal contingente de mulheres estava no Centro, na Voluntários. Mulheres para todos os gostos e todos os preços, menos os que eu podia pagar.
(Os Voluntários, Moacyr Scliar)
Scliar, no entanto, não hesitava quando pensava que deveria desenraizar seu texto do espaço de Porto Alegre para reenraizá-lo em temas bíblicos e no passado da humanidade. Outros autores contemporâneos de Scliar também farão o mesmo, detonando um processo que pode ser traçado até a atual geração de criadores. Caio Fernando Abreu mergulha suas histórias em uma atmosfera pop que a seu modo rejeita o realismo – e, por tabela, a representação urbana tradicional, ainda que algumas histórias sejam ambientadas em pontos reconhecíveis da cidade. João Gilberto Noll, por sua vez, descreve pouco o ambiente externo em que seus heróis se movimentam. Também desloca com desenvoltura o espaço físico de seus romances – algumas de suas principais e mais aclamadas obras se passam fora de Porto Alegre, como A Fúria do Corpo (no Rio), Harmada (em um país fictício) ou Lorde (em Londres).
O que andam dizendo