Já que Os Miseráveis, o filme, está por estrear no cinema, é bom apontar que o romance de Victor Hugo (1802– 1885) é um marco fundador para toda uma corrente de representação da sociedade – Auerbach, em seu clássico Mímesis (Perspectiva, 1998), aponta Victor Hugo como a chave pioneira, ainda que embrionária, da escola realista, por quebrar com a estética clássica anterior que afastava o espírito trágico ou sublime da vida cotidiana. A popularidade da obra não é de hoje. Adaptado para várias mídias, o livro foi best-seller em seu tempo, e seu autor, tachado de perigoso. Victor Hugo não foi apenas um titã literário (posição que alcançou ainda em vida por esforços conscientes, ainda que muitas vezes tenha sido contestado, por seus contemporâneos e pelos pósteros, pela forma autocomplacente como ele insistia em impor tal condição ao mundo ). Ele foi, também, um autor com impecável senso de marketing.
A primeira sinopse para o livro, então chamado de As Misérias, foi vendida a seus editores em 1845, mas a ideia o assombrava desde os anos 1820. Já consagrado quando finalmente terminou sua magnum opus,em 1861, o escritor vivia no exílio na ilha de Guernsey, no Canal da Mancha, pela oposição feroz que havia feito a Napoleão III (a quem chamava de “Napoléon, Le Petit”). A preparação do romance, portanto, foi feita por correspondência, com provas enviadas para o escritor por navio: “Todos os dias, durante oito horas, ele fazia correções, acrescentando mais do que riscava, aguilhoado pelo horário do Correio e o penacho de fumaça expelido pelo paquete postal no porto embaixo.”, escreve seu biógrafo Graham Robb em Victor Hugo: uma Biografia (Record, 2000).
Além de enlouquecer os tipógrafos tendo sempre algo a acrescentar a seu romance já imenso, Victor Hugo também comandou, de sua ilha rochosa, a estratégia, bastante moderna, de divulgação da obra. Aconselhou seus editores a fazerem propaganda maciça na França sobre o papel na trama da batalha de Waterloo, ferida nacional que marcou a derrota definitiva de Napoleão Bonaparte. Como escreveu a seu editor, em carta citada por Robb na mesma biografia:
“Expõe o lado nacionalista do livro, joga com o sentimento patriótico, faze Persigny [ministro do Interior] sentir vergonha antecipada por proibir uma obra em que Ney [o marechal], avô de sua mulher, é finalmente justificado. Torna-lhes impossível confiscá-lo, dizendo que se trata da batalha de Waterloo ganha pela França”.
Outros anúncios foram espalhados pela Europa e até mesmo no Império do Brasil: “Publicou-se a primeira parte de Les Miserables (Fantine) em seguida a uma monumental campanha publicitária m Paris, Londres, Bruxelas, Leipzig, Roterdã, Madri, Milão, Turim, Nápoles, Varsóvia, Pest, São Petersburgo e Rio de Janeiro”. O resultado foi que milhares de exemplares se esgotaram quando o livro foi publicado, de abril a junho de 1862, em 10 volumes. Em Bruxelas, a obra vazou antes do lançamento para gráficas piratas, e havia 21 edições não autorizadas apenas um mês após a publicação do primeiro do primeiro volume – Victor Hugo foi um dos primeiros escritores profissionais ao estilo contemporâneo: vivia do que escrevia, negociava contratos com ferocidade leonina e tinha um entendimento profundo do mercado editorial de seu tempo. Se a isso for aliada a amplitude de seu público, não é de estranhar que seu autor tenha sido considerado um homem perigoso e o livro tenha sido julgado por seu conteúdo ideológico desde o momento em que foi publicado, por contemporâneos como os Goncourt ou Perrot de Chezelles, ou por críticos tardios como Litton Strachey – mesmo um realista como Stendhal considerava Hugo um ídolo que tinha de derrubar antes de estabelecer seu projeto literário.
O que havia de tão “perigoso” na obra, afinal? A poderosa visão de mundo de seu autor, uma forma particular e reformista de socialismo, que acreditava mais na convivência colaborativa entre as classes, mediada por uma espécie de espectro moral humanista – e não o “espectro do comunismo” de seus contemporâneos Marx e Engels, que Hugo, político de carreira, identificaria com a anarquia. Sua visão da sociedade em que vivia, contudo, dialoga com muitas noções modernas ainda vigentes no pensamento social: seus personagens “miseráveis” não são maus por si só, mas criaturas empurradas para o crime e a degradação em busca da sobrevivência em meio à miséria em que vivem.
Pela extensão de Os Miseráveis, as adaptações para outras linguagens normalmente enxugam a história até o osso. Fantine, por exemplo, mãe de Cosette, ocupa, na obra, um espaço pequeno, aparece apenas na primeira parte, enquanto costuma ser levada pelos filmes até a metade da produção. Foi assim com a interpretada por Uma Thurman nos anos 1990, imagino que seja também assim com a de Anne Hathaway. Javert é sempre retratado em qualquer uma dessas adaptações como um homem de tal modo obcecado em prender outra vez o fugitivo Jean Valjean que se torna um vilão maniqueísta – quando seu retrato no livro é menos o de um homem perverso, e mais o de um homem virtuoso que coloca sua retidão a serviço de algo que está viciado desde a origem: o próprio sistema.
Também são comuns, inclusive no Brasil, edições adaptadas, enxugando as 3,1 mil páginas do original para um tamanho mais administrável – o que deita por terra muitas das longuíssimas digressões que Victor Hugo usava para dar um quadro geral da gananciosa sociedade francesa, e apontá-la como a verdadeira responsável pelo crime,por empurrar milhares à miséria. Po aqui, a mais recente edição integral foi publicada pela CosacNaify, em dois volumes, com tradução de Frederico Ozanam Pessoa de Barros. Uma boa adaptação francesa, em quadrinhos, com roteiro de Daniel Bardet e desenhos de Bernard Capo, foi lançada recentemente pela L&PM. E finalmente, temos o filme que está chegando aos cinemas, que não é uma adaptação do livro especificamente, mas do musical de sucesso para os palcos norte-americanos – com uma partitura bem pouco inventiva, diga-se. Na dúvida, já que alguns de vocês aí estão em férias, por que não ir direto ao livro?
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