Amigos, acaba de ser publicado o meu artigo do mês na revista Voto. Reproduzo-o abaixo para vocês.
Há 30 anos…
Há 30 anos, éramos uma nação desesperançosa. Tínhamos certeza de estarmos condenados ao subdesenvolvimento, à ditadura, ao desgoverno, à inflação, à injustiça social, à marginalidade… “Grande pátria desimportante”, bradava Cazuza, dando o tom. “Inúteis, a gente somos inúteis”, rangia o Ultraje a Rigor, fixando o refrão.
Em 15 de março de 1979, o general João Batista Figueiredo chegou à presidência. Foi lembrado como o último dos presidentes militares. Nunca foi popular, mas consolidou o processo de abertura iniciado pelo seu antecessor, general Ernesto Geisel. Apesar do ceticismo reinante, no dia 7 de setembro daquele ano, depois de uma intensa campanha popular, o Congresso aprovou uma anistia parcial, autorizando o retorno de cerca de dez mil exilados.
Em dezembro, a Lei Federal nº 6.767 extinguia o bipartidarismo. No início de 1980, surgia uma nova plêiade de partidos: PMDB, PDT, PT, PP, PDS. Outros foram sendo organizados na sequência.
Aquele foi o “Verão da Abertura”, cujo símbolo foi a tanga de crochê que o ex-guerrilheiro Fernando Gabeira desfilou na praia de Ipanema. O país sonhava com a mudança. A juventude, os artistas, a intelectualidade e os políticos de esquerda ansiavam em afugentar o conservadorismo e retomar o fio da História interrompido em 1964.
Mas nada seria fácil. Em 27 de agosto de 1980, explodiu uma carta-bomba na sede da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) no Rio de Janeiro, ferindo mortalmente a secretária Lyda Monteiro da Silva. O ataque, cuja autoria nunca foi esclarecida, ocorreu no momento em que a OAB fazia uma campanha pública para identificar agentes dos serviços de segurança suspeitos de torturar o jurista Dalmo Dallari, sequestrado em julho do mesmo ano em São Paulo. Cerca de seis mil pessoas foram ao enterro de Lyda, que se tornou palco para uma manifestação em defesa do processo de abertura política. Suspeitou-se, à época, que o atentado partira da extrema direita abrigada nos serviços de informação, contrária à redemocratização.
Com a oposição dividida em quatro partidos e os governistas concentrados no PDS, Figueiredo adiou por dois anos as eleições municipais marcadas para novembro, estendendo o mandato dos prefeitos e vereadores, na sua maioria, identificados à antiga Arena. O grande teste dos novos partidos políticos veio em novembro de 1982. Era a primeira vez, desde 1965, que a população elegia os governadores dos Estados pelo voto direto. Mas um pacote eleitoral proibiu as coligações partidárias e estabeleceu o voto vinculado: assim, um vereador e um prefeito puxavam o voto para outros candidatos do partido. O estratagema beneficiou uma vez mais os governistas.
Figueiredo alcançou o final de seu mandato desgastado. Uma explosão no estacionamento do Riocentro, num show que comemorava o Dia do Trabalho, em 1981, foi o último atentado da extrema direita contra a abertura. Os suspeitos não foram punidos, e ministros caíram. O episódio sintetizou a falta de popularidade de uma ditadura derrotada, mas ainda ameaçadora.
Durante a década de 1970, o país crescera em média 8,7% ao ano. Mas, na década de 1980, estes índices despencaram para raquíticos 2,9%. Em 1985, a inflação alcançava a casa dos 211%. A relação entre salários e preços estava desequilibrada, enquanto o desemprego atingia proporções alarmantes. Nas grandes cidades, registravam-se saques com frequência, e a violência sobressaltava. Em São Paulo, o fenômeno das greves tornou-se endêmico: só no ano de 1979 foram mais de 400! Houve vários enfrentamentos com a polícia, especialmente durante as paralisações dos metalúrgicos em São Bernardo do Campo. Luiz Inácio Lula da Silva surgia como liderança do “novo sindicalismo”, enfrentando a ditadura e a classe patronal. No campo, o quadro não era menos apreensivo. A Pastoral da Terra organizava-se e desenhava-se o surgimento do MST.
O chamado “milagre brasileiro” chegava ao ocaso, deixando ressaca. A economia exigia ajustes severos, a dívida externa atingia cifras esmagadoras, o déficit público era brutal, a estrutura do Estado clamava por reformas, a questão social explodia. A sociedade precisava reconquistar a autodeterminação. O primeiro passo para os novos desafios era a reconstitucionalização do país, o reencontro com a democracia. Em torno da divisa “Diretas Já!”, a nação foi às ruas, exigindo eleições diretas para a presidência. Os grandes comícios voltavam à cena nas principais cidades.
O Movimento das Diretas, que nascera com uma proposta de emenda constitucional de um obscuro deputado do Mato Grosso, Dante de Oliveira, ganhou as ruas. Mas foi derrotado na votação congressual de abril de 1984. A frustração, contudo, mais uma vez foi suplantada pelo sonho, quando o mineiro Tancredo Neves, político civil e da oposição, foi eleito pelo Colégio Eleitoral em 15 de janeiro de 1985. O povo aderiu entusiasticamente ao eleito. Porém, nos dias que se seguiram, a enfermidade de Tancredo sepultou as esperanças e espalhou comoção. Após sete operações, Tancredo faleceu no dia 21 de abril. Em seu lugar, foi empossado o vice, José Sarney, do PMDB.
Alguns duvidavam que os militares permitissem a sua posse. Mas Sarney surpreendeu. No início de seu mandato, agilizou reformas que Tancredo, talvez, fizesse com mais cautela. Fixou eleições diretas para a presidência e para as capitais, eliminou a fidelidade partidária, expandiu o direito de voto aos analfabetos, garantiu total liberdade na fundação dos partidos e deu o direito de representação aos moradores do Distrito Federal. Finalmente, a Emenda Constitucional nº. 26, de 27 de novembro de 1985, convocou uma Assembleia Nacional Constituinte. A tarefa caberia à 48ª Legislatura, empossada em março de 1987.
As eleições de 1986 sagraram nas urnas o PMDB. Dos 22 governadores, o partido elegeu 21; conquistou 54% das cadeiras no Congresso e maioria esmagadora na maior parte das Assembleias Legislativas. Este sucesso veio do anseio por varrer do país o “entulho autoritário” e a reboque da popularidade alcançada pelo “Plano Cruzado”. No dia 28 de janeiro de 1986, o “cruzado” substituiu o desprestigiado cruzeiro. Foram cortados três zeros da moeda e os preços, congelados. A indexação da economia foi suprimida. Os consumidores foram convocados pelo governo para auxiliar no controle dos preços: surgiram os famosos “fiscais do Sarney”. Mas a engenhosa medida pouco levou em consideração as leis do mercado, submetido às injunções da oferta e procura. Em pouco tempo, certos produtos desapareceram das prateleiras. O ágio entorpeceu o comércio. Mas o “congelamento dos preços” foi sustentado até as eleições de 15 de novembro. Na semana seguinte veio o Plano Cruzado II, liberando os preços e as tarifas de serviços públicos. A popularidade do presidente da redemocratização despencou, arrastando a imagem do PMDB. O pessimismo invadiu a nação.
Praticamente sem reservas cambiais, o Brasil declarou moratória sobre o pagamento dos juros da dívida externa em fevereiro de 1987. O país seguia, assim, os passos do México, que em 1982 despencara na insolvência. A desconfiança dos credores internacionais tornou a situação angustiosa.
Em inícios de 1988, o Plano de Verão surgiu de surpresa. Era a terceira tentativa do governo para estabilizar a economia. O novo congelamento de preços também naufragou. Uma avalanche de denúncias de corrupção e distribuição de privilégios em nada contribuía para estimular a confiança do povo nos dirigentes. Poucos dias antes do ano acabar, foi assassinado no Acre o ambientalista Chico Mendes. Sua morte teve grande repercussão internacional e simbolizou o fracasso de uma política social rural e ambiental para o Brasil.
Caminhávamos para o fim da década de 1980 com muito pouco para comemorar.