Chegou o Carnaval! Reproduzo abaixo para vocês um trecho de uma aula que ministrei na Université Paris VII, Denis Diderot, em janeiro de 2009, quando, dentre outras coisas, falei sobre o Carnaval. Este texto foi publicado em francês em setembro último pela Editora Flammarion.
Se escaparmos da prisão estruturalista proposta por Roberto DaMatta em seu “Carnavais, malandros e heróis” e injetarmos historicidade no argumento do antropólogo, há muito de sua análise que é possível reter. Creio que DaMatta acerta em cheio ao caracterizar o carnaval como um evento extraordinário previsto, caracterizado pela extrema descentralização e pela inversão de hierarquias. Um momento onde “as classes sociais podem se relacionar de cabeça para baixo”, pois “o elemento mediador entre elas não é somente o poder e a riqueza, mas o canto, a dança, as fantasias, a alegria”. O recado do carnaval é que “as diferenças existem, mas todos são também e primordialmente humanos”.
O carnaval não é de ninguém e é de todos. É uma festa do povo, um evento da massa. A organização do carnaval se dá a partir da desorganização. É o caos da massa produzindo uma ordem própria. Algo, creio, para fazer tremer conservadores empedernidos como o filósofo espanhol Ortega y Gasset. O carnaval brasileiro é, neste caso, a prova de que Gasset errou feio, pois a massa não apenas pode ser criativa como pode produzir uma ordem a partir da descentralização total. Para além disso, DaMatta acerta novamente ao notar que o carnaval se inscreve dentro de uma cronologia cósmica, pois situa-se numa escala cíclica, independente de datas fixas. É o momento de exagero que se antecipa à continência da Quaresma, revelando valores não apenas brasileiros, mas cristãos. É uma “comemoração cósmica” que “celebra o estado de ser pobre e destituído”, com “fantasias que distinguem e revelam”. As muldidões, portanto, que engendram o carnaval com criatividade incomum, o fazem a partir de uma legitimidade na tradição – status que Ortega y Gasset nega terminantemente a elas.
DaMatta acredita, ao meu ver corretamente, que o nome escola de samba tem um significado compensatório. No Brasil, os pobres e os “menos instruídos” se reúnem numa escola de samba e surgem como professores, ensinando o prazer de viver atualizado no canto, na dança, na música, na fantasia. A escola de samba, penso, é uma dessas instituições que oportunizam um efetivo “diálogo intercultural” interno, para usar conceito do filósofo François Jullien. Graças à dinâmica do carnaval, os traços da cultura popular que ali se configuram foram elevados à condição de festa nacional, condensando a identidade brasileira. A elite não apenas admira a cultura popular, como aprende com ela. Esta circularidade permite a elisão das fronteiras rígidas entre uma alta cultura e a cultura popular, pois o samba e o carnaval não apenas foram incorporados pela indústria cultural de massas, como aconteceu com o rock’n roll e o jazz, como ainda adquirem o status de essência da identidade brasileira. Dizer que o Brasil é o País do carnaval é aceitar que a cultura popular ganhou ali uma espécie de trono.
E este diálogo não pára. No Rio de Janeiro, o carnaval surgiu originariamente no modelo entrudo, festa que teve início em princípios do século XVIII, trazida por imigrantes portugueses das ilhas da Madeira, Açores e Cabo Verde. O entrudo é um jogo que se caracteriza pela ocupação violenta das ruas. Era forte a participação do elemento escravo nestes momentos, liberto temporariamente de algumas amarras sociais. Não havia música. Apenas correrias e agressões. Trata-se de uma válvula de escape simbólica, que ainda hoje subsiste em cidades da fronteira do Rio Grande do Sul com a Argentina, onde se verificam combates com água, farinha, espuma, etc…
No século XIX, a elite urbana importou da França os bailes de carnaval, tendo o primeiro se realizado no Rio de Janeiro em 1840. Introduziram-se as fantasias e a música: valsas, mazurcas, tangos. Em 1847, apareceu o Zé Pereira, personagem de um português bigodudo portando um enorme bumbo tocado sem musicalidade: foi o precursor dos blocos. Na década de 1860, a polca invadiu os salões. Foi um passo para o maxixe. O samba nasceu em 1917 da fusão do maxixe com o batuque dos africanos e com o lundu, uma dança de natureza híbrida, malemolente e lasciva, criada pelos escravos bantos trazidos de Angola e fundida a ritmos portugueses, aproveitando características de danças ibéricas, além do acompanhamento instrumental do bandolim. Antes disso, entretanto, o carnaval do Rio já era embalado pelas marchinhas. Em 1899, Chiquinha Gonzaga compusera já a primeira música feita especialmente para o carnaval: “O abre-alas”. E Carmen Miranda tornou-se a rainha do carnaval carioca nos anos 1920.
O carnaval refinado europeu, que se concentrava na Rua do Ouvidor, foi perdendo forças, na esteira da decadência das sociedades de elite que o sustentavam, enquanto o carnaval mais popular desenvolvia-se espontaneamente, espalhando-se com certo descontrole pela cidade. Ao ser guindado ao poder pela Revolução de 1930 e, posteriormente, pelo golpe que instituiu o Estado Novo, Getúlio Vargas fez o estado intervir na festa, subvencionando-a e ordenando-a, de maneira a conter o seu potencial ofensivo. Surgiram as escolas de samba, nascidas nos morros e nos subúrbios, e os desfiles comportados, que cresciam a medida em que os irreverentes e tradicionais blocos eram esvaziados. Introduziu-se o espírito competitivo entre as escolas, o que passou a funcionar como estímulo no sentido da permanente qualificação do espetáculo, contribuindo ainda para a sobrevivência do novo modelo. A festa foi cada vez mais regulada pelo Poder Público, mas as escolas a organizam autonomamente.
Hoje, o carnaval converteu-se numa indústria cultural de massas e em principal atração de uma poderosa indústria turística. No Rio de Janeiro, as escolas protagonizam o maior show business do mundo, envolvendo milhares de pessoas, gerando renda e empregos e com orçamentos milionários. Registra-se um aumento de 40% no fluxo de turistas no período do carnaval. São mais de 50 mil desfilantes, assistidos por 60 mil pessoas. 40% dos ingressos de acesso ao sambódromo são distribuídos ao povo, ou comercializados a valores módicos. Cada escola de samba doa centenas de fantasias, para garantir a presença das comunidades nas quais elas se originaram. Uma parte das fantasias é comercializada a preços salgados para moradores do Rio, de fora das comunidades, ou para turistas, nacionais e estrangeiros, que já não se contentam em assistir ao carnaval: querem também fazer parte dele, desfilando na avenida!
Deriva daí mais uma fórmula peculiar. Pois se trata talvez do único caso de uma grande festa nacional, que pretende condensar a essência da identidade cultural de uma sociedade, completamente aberta a qualquer um, seja nacional ou estrangeiro. De fato, quem assiste ao carnaval carioca pela televisão nutre a impressão de que o espetáculo é resultado de meses e meses de ensaios, sendo acessível apenas às pessoas capazes de desenvolver muita intimidade com o meio, dominando a letra da música, os passos da dança, as evoluções, etc. Com efeito, os ensaios existem e, aliás, também estão abertos aos turistas. Mas as escolas de samba possuem uma estrutura ao mesmo tempo rígida e fluída. Dividem-se em alas, cada qual com a sua fantasia. E o desfile está circunscrito ao espaço da avenida. Um estrangeiro qualquer pode comprar uma fantasia e integrar-se a uma ala. A letra do samba enredo aprende-se na hora, para aqueles que falam o português. A falta de samba no pé não será percebida se o estrangeiro desajeitado desfilar no centro da ala, evitando as laterais, cuidado devidamente providenciado pelos chefes de alas. O estrangeiro dificilmente compartilhará o espírito de competição entre as escolas, mas poderá fruir o prazer de desfilar, de brilhar na avenida.
No carnaval de Salvador a integração é ainda mais fácil. Basta sair pela rua, pois bem diz a letra da música: atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu. Para aqueles que temem a multidão, há a possibilidade de adquirir um abadá, espécie de camisa com as cores do bloco, que dá direito ao usuário abrigar-se atrás de uma corda guarnecida por seguranças. Isto sem mencionar os camarotes, alguns dos quais, imensos. Não é á toa que em todo ano estima-se o crescimento da festa em pelo menos 5% nos grandes centros urbanos: ela tem o mundo inteiro para acolher!
Ora, vê-se daí que o carnaval não tem nada de perpétuo, ou de estático, como deu a entender DaMatta com sua análise estruturalista. Ele já mudou muito. E continua mudando. Porque é justamente o contrário: um espaço de dinamismo, de hibridismo simbólico, de disputas e de diálogo intercultural. Ao olharmos para a historicidade do carnaval, vemos uma instituição que funde permanentemente o moderno e o arcaico. Neste sentido, o carnaval pode ser interpretado a partir da metáfora antropofágica de Oswald e de Mario de Andrade.
Enfim, diferentemente do Dia da Pátria, um ritual totalmente voltado para dentro da sociedade brasileira, quando se destacam os símbolos nacionais, como a bandeira, o hino, o dia da Independência, o carnaval, como celebração cósmica, é voltado para fora, como nota DaMatta com perspicácia: “as fantasias atualizam combinações totalmente não-gramaticais do cotidiano da cultura brasileira”, criando um campo heterogêneo. Assim, é comum ver um bandido bailando com um xerife, uma caveira cortejando uma moça, homens vestidos de mulheres… As fantasias criam um campo social de encontro, de mediação, de polissemia, onde a união se dá pela suspensão de fronteiras que normalmente compartimentalizam grupos e pessoas. Há lugar para todos os seres, todos os tipos, todos os personagens. Todos os valores estão contemplados com igual grandeza. Trata-se de um “festival popular, marcado por uma orientação universalista, cósmica, que dá ênfase a categorias mais abrangentes, como a vida em oposição à morte, a alegria em oposição à tristeza”. E, além disso, um “campo social aberto, situado fora da hierarquia”. Como no carnaval nenhum folião busca um alvo inadiável ou objetivo focado – como fazemos no dia-a-dia do trabalho, do partido político, do clube social -, pois o que se busca lá é a alegria, o prazer, a música, a dança, surge uma comunidade abrangente e inclusiva.
DaMatta caracteriza, ainda, a escola de samba como uma organização coletiva, mas que permite e estimula o destaque. A palavra destaque designa já a pessoa que se projeta no momento do desfile, tornando-se uma celebridade temporária. Para DaMatta, tudo que é rigorosamente coletivo numa escola de samba, como a bateria, é uniforme, perde em brilho e em evolução. Para ele, se no mundo diário a escola suprime individualidades, ordenando-se em torno do poder patronal do seu presidente, no desfile, justamente ao contrário, ela permite o desencadear de individualidades. Esta constatação esvazia certo debate contemporâneo que acredita avançar no carnaval um exibicionismo crescente do indivíduo. Pois, afinal, altamente afinada com a contemporaneidade narcísica, é precisamente isto o que a escola de samba se propõe a fazer: projetar o indivíduo, positivando o exibicionismo. A única coisa que talvez mereça ser atualizada neste particular é que quando DaMatta escreveu seu livro, os destaques eram em sua maioria mulheres ou homossexuais. Hoje, diluiu-se muito o tabu em torno do nu masculino e muitos homens heterossexuais desfilam em posição de destaque.
Em outros aspectos, a análise de DaMatta aparece mais datada. Quando escreveu seu livro, o centro do Rio de Janeiro era o território do carnaval. Hoje, o carnaval acontece em um lugar construído especialmente para ele, o sambódromo, na zona norte. A cidade do Rio de Janeiro, também mudou. Há muito os bairros da zona sul deixaram de ser zonas quase que apenas residenciais, contribuindo para esvaziar a lógica binária de centro/bairro, trabalho/feriado, fluxo para casa/fluxo para o trabalho.
Fora do sambódromo, fervilham por toda a cidade os blocos, de maneira espontânea e muito pouco hierarquizada. Nos últimos anos, houve um renascimento do carnaval dos blocos de rua no Rio de Janeiro. Esta ebulição é caótica. Muitos blocos não têm horário certo para partir, nem percurso plenamente consolidado, o que é bem diferente de Salvador, onde o desfile acontece em circuitos comuns, pré-definidos.
A caracterização da hierarquia interna das escolas de samba como algo extensivo a todo o carnaval também deve ser relativizada. Em Salvador, por exemplo, a competição entre os blocos é irrelevante. O carnaval de Salvador pouco conhece das fantasias elaboradas e dos desfiles ordenados. É a elevação do hedonismo à potência máxima. Como registra Camille Paglia: “O carnaval de Salvador é tão impressionante e multifacetado que nunca poderá ser completamente documentado. O grande carnaval do Rio de Janeiro, em contraste, tornou-se uma série de painéis para ser vista da arquibancada, como no futebol. Pode ser descrito por câmeras postas em locais predeterminados. Mas o carnaval de Salvador não pode ser realmente fotografado. A cada noite, entre os milhões de foliões seguindo os trios elétricos, há bilhões de interações humanas e um caleidoscópio onírico da arquitetura da cidade que vai se descortinando. Não há paralelo nos Estados Unidos para a liberdade de movimento do carnaval de Salvador.“
A festa de massa em toda a sua plenitude. A tomada completa de várias ruas da cidade, num enorme perímetro pelo qual transitam os trios elétricos, desfilam os blocos, as tribos e os afoxés. Um carnaval que se reinventou completamente nos últimos 30 anos, criando até novos ritmos, como o axé, e em torno dele toda uma indústria cultural própria, com forte ênfase regional, mas que se internacionaliza progressivamente.
Na década de 1970, vivia-se já o eclipse dos bailes de carnaval de salão, em todo o País. No Rio de Janeiro, a transposição do carnaval para a Avenida Sapucaí e a construção do sambódromo tornaram o espaço protegido do salão redundante. A nova estrutura encarregou-se de propor o carnaval segundo moldes que contemplam as diferenciações sociais. Há as arquibancadas, as mesas, as frisas e os camarotes. Alguns camarotes são tão grandes que conformam verdadeiros bailes, reunindo centenas de convidados. A mesma dinâmica dos camarotes transportou-se para o popular carnaval de Salvador. De qualquer forma, os camarotes aproximaram a classe alta da rua, pois transportaram o clube para a rua. E é o povo que continua a fazer o espetáculo, que continua a criar o carnaval.
Quando DaMatta escreveu seu livro, São Paulo era ainda considerada o túmulo do samba. Com forte presença da imigração européia e inserida na dinâmica capitalista global, seus habitantes viam no feriado de carnaval uma oportunidade para deixar a metrópole. Esta realidade se transformou. O carnaval de São Paulo organizou-se a partir do modelo do Rio de Janeiro e hoje oferece um espetáculo de igual grandeza, embora sem a mesma tradição. O carnaval de São Paulo beneficiou-se da pujança do pólo economicamente mais dinâmico do País. É também transmitido pelos canais de televisão aberta. Em São Paulo, entretanto, o carnaval circunscreve-se ao sambódromo. É, por enquanto, irrelevante o papel de blocos na cidade.
A hierarquia religiosa, cristã, que conforma o carnaval está diluída. Quando DaMatta escreveu seu livro, o carnaval encerrava-se na Quarta-Feira de Cinzas com o “silêncio pesado de uma missa”, celebração, esta, da qual mal se ouve falar hoje em dia. Embora o Brasil permaneça ainda um país predominantemente de fé católica, há muito a Igreja perdeu o monopólio das relações com o espiritual. Os anos 1980 viram crescer exponencialmente as igrejas neopentecostais e, em cidades como Porto Alegre e São Paulo, os rituais espíritas e afro-brasileiros gozam de grande prestígio e dinamismo. O ciclo de penitência e arrependimento da Quaresma perdeu amplitude. Hoje, a Páscoa é celebrada apenas num final de semana. No século XIX, havia os anos de Quaresma, nos quais toda diversão era banida. Se o tempo da Quaresma vem encolhendo, o do carnaval, ao contrário, se alarga. Em Salvador, começa já na quinta-feira. Isto sem falar nas Lavagens, como a do Rio Vermelho, no dia 2 de fevereiro, ou a do Bom Fim, que antecipam a folia. As Micaretas, festejadas em junho, deslocam o carnaval para o interior e permitem uma continuidade extemporânea da festa.
A extensão do tempo do carnaval talvez possa ser lida como um sintoma da carnavalização, no sentido de ampliação da criatividade e dos espaços de liberdade, da sociedade brasileira pós-abertura política. DaMatta escreveu o seu livro em plena ditadura militar, quando os canais de exercício da cidadania estavam comprimidos. O estado impunha a censura, cassava mandatos, tutelava os partidos, manipulava a legislação eleitoral, perseguia, torturava. Em tal ambiente, não estranha a dificuldade para encontrarmos o que DaMatta chama de instituições totais, isto é, aqueles agrupamentos que definem bem suas fronteiras internas e externas, se concentrando em objetivos específicos. Grupos de interesse, cuja presença é fundamental para animar uma democracia.
O carnaval brasileiro encontrou uma fórmula peculiar de inclusão quase sem fronteiras. Como campo de inversão de hierarquias e aberto a todos os gostos, todos os valores, todas as formas, como um território, embora reproduzindo a diferenciação social e dialogando com o mercado, sem comando centralizado e com estruturas altamente fluídas, ele se abre à participação de todos os sujeitos, estabelecendo por objetivo central o essencialmente humano que está contido no riso, na diversão, na alegria, na dança, na música, no prazer. O carnaval, fusão de cristão e de pagão, hibridizando as culturas ibéricas, européia e africana, domesticado pelo estado interventor de Getúlio Vargas, terminou por engolir a identidade brasileira, confundindo-se em essência com ela, para se converter em indústria cultural e, recentemente, em produto de exportação. Finalmente, no sentido dado pelo filósofo François Jullien, projeta-se cada vez mais como um rito informal, que permite a emergência de um superampliado comum, no que este conceito tem de político, em toda a sua dimensão muilticultural e tolerante.