Está on line o meu artigo do mês na revista Voto. Reproduzo-o abaixo aí para vocês.
Como afirma o historiador Stuart Schwartz, em sua obra clássica sobre o Tribunal da Relação da Bahia, intitulada Burocracia e Sociedade no Brasil Colonial, “a administração da Justiça é a chave para a compreensão dos Impérios da Espanha e Portugal nos séculos XVI e XVII”. O Império marítimo português era um organismo transcontinental animado pelo comércio, moldado por princípios religiosos e militares, que tinha na distribuição da Justiça a espinha dorsal da administração.
Em fins da década de 1580 surgiu o projeto de instalação de um tribunal no Brasil. A criação da Relação da Bahia, determinada em 1588, foi, contudo, obstada, pela força dos ventos e das marés, que dispersaram a frota responsável pela condução dos primeiros desembargadores. A nova Relação começou a funcionar apenas em 1609, já, então, sob o reinado de Felipe II. O interesse foi reavivado pelo aumento do volume de recursos enviados da colônia para os desembargos da metrópole. Além disso, havia denúncias de que os ouvidores-gerais nas Capitanias estavam exorbitando de suas atribuições políticas e começavam a falhar com seus deveres administrativos.
Modelado de acordo com a Casa da Suplicação de Lisboa, o tribunal brasileiro garantia aos seus integrantes os mesmos direitos e privilégios gozados pelos desembargadores de Portugal. A Relação era formada por três desembargadores dos agravos e apelações, dois desembargadores extravagantes, um juiz dos feitos da Coroa, da Fazenda e do Fisco, um provedor dos defuntos e resíduos, um ouvidor-geral do cível e do crime (cargo já existente e que foi incorporado à estrutura da corte, segundo o regimento da Casa da Suplicação) e um chanceler. O chanceler ocupava o segundo cargo em importância dentro da organização administrativa e judicial brasileira, podendo, inclusive, substituir o governador em sua ausência. Finalmente, havia entre os magistrados um procurador da Coroa, que acumulava também as funções de procurador da Fazenda e a promotoria.
A instalação da Relação da Bahia em 1609 deu início no Brasil ao chamado “governo magistrático”. Os desembargadores designados para o novo tribunal possuíam larga ficha de serviços prestados à justiça portuguesa e à Coroa. Na Colônia, compuseram uma elite de letrados distinta do grosso da população formada de degredados, mestiços, comerciantes de escravos e magnatas do açúcar. Reproduzindo ali as idiossincrasias corporativas alimentadas na metrópole, ao mesmo tempo em que estavam a serviço da Coroa, enfeixavam certa dose de autonomia, podendo abraçar interesses próprios, estabelecer alianças temporárias com grupos de poder ou mediar choques entre frações de classe em rivalidade.
A justiça era distribuída com morosidade, dado, especialmente à dificuldade de reunir os desembargadores, os quais podiam dispersar-se em diligências pelo interior, eram vitimados com certa freqüência por moléstias ou, então, depois de terem sido nomeados pela Coroa muitas vezes demoravam anos para chegar à Colônia. Aspectos dos códigos de processo criminal precisaram ser adaptados às condições locais, como no caso das sentenças envolvendo penas de morte, que exigiam maioria de votos tirada de número par de desembargadores, o que, diante de eventual divergência de opiniões, inviabilizava o desfecho na Colônia. Numa sociedade com altos índices de exclusão social e violência, choviam demandas criminais sobre a magistratura. Grande era também o volume de solicitação civis e comerciais, multiplicadas particularmente face ao costume dos colonos de firmar contratos orais, estratégia empregada para fugir dos preços vexatórios cobrados por tabeliães venais. Semelhante contexto oferecia um mar de oportunidades aos advogados e rábulas, que proliferavam na Colônia.
Se por um lado a magistratura se fundiu à sociedade colonial e contribuiu para equacionar impasses entre os grupos sociais, por outro granjeou conflitos. Logo depois da instalação da Relação, a escravização dos índios opôs a Coroa e os Magistrados aos colonos. Por mais de uma vez, os conselhos municipais colocaram-se em pé de guerra com o tribunal, repudiando a intervenção dos desembargadores nos atos administrativos e legislativos locais. Embora as relações com o governo-geral fossem normalmente de cooperação, outras instituições da Colônia, como o bispado, a provedoria-mor e as tropas militares, reagiram ao poder do tribunal. A virulência de muitos desses choques esteve por traz da conspiração cujo desenlace foi o fechamento da Relação, pelo Alvará régio de 5 de abril de 1626, sob pretexto de patrocinar economia diante da necessidade de mobilização de recursos extras para fazer frente à invasão holandesa no nordeste brasileiro. Afinal, em momento tão delicado, a Coroa não podia desperdiçar forças com conflitos internos e carecia estreitar a aliança com os colonos.
Com a abolição da Relação, os tribunais de Portugal voltaram a ser a instância de apelação para a Colônia. As dez magistraturas foram extintas e a administração da Justiça na Colônia retrocedeu ao antigo sistema da ouvidoria-mor, que personificava a influência da justiça senhorial. As correições e atividades fiscalizadoras dos desembargadores itinerantes foram suspensas.
Essa situação perdurou até março de 1653, quando novos magistrados prestaram juramento da Relação da Bahia, refundada a partir de regimento promulgado em 12 de setembro de 1652. Entrementes, Portugal separara-se da Espanha em 1640, os luso-brasileiros, apesar de amargarem as derrotas de Málaca, Colombo e Malabar, no oriente, haviam enxotado os holandeses de Angola, em 1648, e, em 1654, terminariam por libertar as capitanias do norte do Brasil. Desde 1642, sentindo necessidade de moralizar a administração colonial e esperando resgatar um canal de comunicação com o governo central metropolitano, a mesma Câmara de Salvador que sabotara a Relação em 1626 enviava ao Reino petições para o seu restabelecimento, medida que passou a ser discutida no recém-criado Conselho Ultramarino.
A fundação da Relação do Rio de Janeiro, em 1751, encerrou um ciclo, durante o qual a cidade de Salvador afirmara-se como um dos grandes centros do império colonial português, capital do Brasil e eixo central do comércio com a África, com o Prata e com a Europa. No solo fértil do Recôncavo Baiano, a cultura da cana de açúcar, importada de São Tomé no começo do século XVI, vicejou a ajudou a constituir fortunas, estimulando outras atividades e serviços. O comércio de escravos foi uma das alavancas propulsoras desta economia, desenvolvendo-se na esteira do crescimento da cultura açucareira. A criação de gado e cavalos, originalmente trazidos do Cabo Verde, expandiu-se, convertendo-se em outro produto importante de exportação para a África e para a Angola. Rum e tabaco também se tornaram produtos nesta pauta de comércio. Salvador era o centro de um amplo sistema mercantil.
Era uma terra de oportunidades. Por volta de 1620 havia cerca de 15 barcos dos Países Baixos no porto da cidade e 29 refinarias de açúcar na Holanda. O açúcar brasileiro era transportado por embarcações portuguesas, mas também inglesas, escandinavas, holandesas…
No século XVII, a cidade não só abrigava ativa comunidade mercantil, ligada ao complexo açúcar-escravo, como também acolhia o cerne da administração colonial. O Brasil ultrapassara a Índia em importância econômica para Portugal. Salvador era a sede do governo, do bispado e da Relação. Por volta de 1700, a parte urbana de Salvador contava com 40 mil habitantes. Estima-se que mais de 50% desta população era composta por escravos, mas o contingente de negros era maior, pois havia os libertos e mulatos. Religião, folguedos e festas populares eram os principais passatempos da população. As procissões eram freqüentes e grandiosas e as igrejas de beleza inigualável. Por volta de 1700, havia 13 igrejas em Salvador.
Neste contexto, os juízes da Relação integravam um conjunto de burocratas bem treinados e, em geral, leais à Coroa. Costumavam ser requisitados em correições sempre que surgiam situações perigosas no Brasil. Foram convocados a investigar, por exemplo, o ataque francês ao Rio de Janeiro, em 1710, a explosão de violência urbana em Minas Gerais, em 1720, e a Guerra dos Mascates em Pernambuco, em 1711. Também chegaram a conduzir residências e devassas na África. Em 1684, o Desembargador Antônio Rodrigues Banha foi enviado para Luanda. Em 1714, outro juiz do tribunal baiano conduziu investigação em São Tomé. Em 1744, sete líderes da revolta escrava de São Tomé foram enviados para a Bahia, a fim de serem julgados pela Relação.