No último dia 16 de dezembro, os jornais noticiaram a morte do célebre crítico literário e polemista britânico radicado nos Estados Unidos, Christopher Hitchens. Vitimou-o uma pneumonia decorrente de um feroz câncer no esôfago, contra o qual lutava há 18 meses. Foi, indubitavelmente, um desses sujeitos que deixava o mundo mais interessante, mesmo quando se batia por teses insustentáveis.
Não sou especialista na sua obra. Li dele a ótima coletânea Amor, Pobreza e Guerra, o comentadíssimo Deus não é Grande, ainda na edição americana, alguns artigos esparsos publicados na Nation e na Vanity Fair… e estava justamente me deliciando com seu Hitch 22, livro de memórias lançado em 2010. Dono de um texto elegante e provocativo, este irrequieto intelectual público é quase sempre instigante.
Encontrei-o pessoalmente em duas oportunidades. A primeira vez foi em 2006, na Flip, em Paraty, no Rio de Janeiro. Havia grande expectativa em torno de sua aparição, afinal, tratava-se de um dos mais badalados polemistas da segunda metade do século XX, que pretendia seguir a tradição de um George Orwell, sobre quem, aliás, escreveu um livro. Ele participaria de uma sessão com Fernando Gabeira, discutindo, dentre outras coisas, a chamada guerra ao terror. A composição não era de todo improvável, pois ambos tinham em comum a origem na esquerda, de cuja versão mais doutrinária vinham se distanciando progressivamente desde os anos 1980.
Para Hitchens, o ponto de inflexão mais evidente fora a timidez da esquerda europeia diante da condenação, pelo regime iraniano, do escritor Salman Rushdie, então ameaçado de morte. Gabeira, por sua vez, divergiu de uma visão romântica da luta armada durante a ditadura militar e reconheceu que a resistência radical carregou também o componente de ajudar o regime a justificar a sua permanência. Ambos concordavam que, depois da queda do Muro de Berlim, a sobrevivência das bandeiras de esquerda no Ocidente passava por uma atualização das pautas, sendo inescapável o compromisso com a radicalidade democrática e a liberdade. Gabeira lançou-se na pugna pelos direitos das minorias e abraçou a causa ecológica. Hitchens cada vez mais chamou a atenção investindo contra celebridades, como a Madre Teresa de Calcutá, Lady Di, Bill Clinton e, finalmente,… Deus.
O encontro não foi dos mais felizes. Gabeira considerou a guerra do Iraque aberrante. Já Hitchens – o mesmo que investira na denúncia do esquecido genocídio dos armênios, perpetrado pelos Jovens Turcos durante a Primeira Guerra Mundial, ou, ainda, que militara contra a Guerra do Vietnã – surpreendera a todos assumindo em 2003 uma posição declaradamente favorável à invasão americana no Iraque. Para os neo-cons de Bush, não poderia haver melhor garoto propaganda do que o verborrágico polemista, cuja verve vinha fulminando o legado da política externa de Henry Kissinger, a quem insistia em declarar criminoso de guerra. Desde o 11 de setembro, Hitchens tornara-se obcecado pela ideia de um islamofascismo a ameaçar os valores do Ocidente, parecendo absorver a frágil, mas mobilizadora, lógica do conceito de choque das civilizações, cunhado por Samuel Huntington.
Em Paraty, assim, assisti-o garantir que as provas da existência das armas de destruição em massa, que serviram de pretexto para justificar a invasão norte-americana, ainda seriam encontradas. Não apenas nunca apareceram, como, depois de dez anos, mais de 100 mil mortos e trilhões de dólares jogados pelo ralo, torna-se cada vez mais improvável reconhecer a pertinência daquela surtida.
Curiosamente, não era a primeira vez que Hitchens engajava-se na defesa de uma intervenção militar. Em 1982, rompera com a Internacional Socialista ao apoiar a Inglaterra no conflito com a Argentina em torno das Ilhas Malvinas. Aparentemente, acreditava que os ingleses ajudariam a depor o ditador General Leopoldo Galtieri, quando tudo o que de fato pretendiam era preservar a sua posição estratégica no Atlântico Sul. Dez anos mais tarde, Hitchens debruçou-se sobre a questão bósnia, fustigando o sanguinário Milosevic, enquanto a esquerda ainda flertava com o suposto herdeiro de Tito. Pelo menos um ano antes do horror de Sebreninca, Hitchens alertava para a iminência de um genocídio. Clamou por uma intervenção militar das forças internacionais na Ex-Iugoslávia, que acabou chegando, mas não antes que 200 mil pessoas morressem.
Outro badalante polemista, o francês Bernard-Henri Levy, também se mobilizara em favor de uma intervenção militar na Iugoslávia, encampando os mesmos argumentos. Todavia, mais cauteloso, BHL, embora entusiasta da cultura norte-americana na França, jamais festejou a guerra de Bush. Considerou-a inconveniente por não contar com a legitimidade da ONU e a adesão da França e da Alemanha.
Vagamente informado sobre o envolvimento de Gabeira no sequestro do Embaixador Norte-Americano, em 1969, Hitchens alfinetou seu colega de mesa, com agressiva ironia: alertou-o manterem os americanos salas especiais para os terroristas nos aeroportos do País. Um frêmito constrangido percorreu a lotada e atenta plateia. Para um homem conhecido por suas explosões de ira na pugna por uma ideia, não era atitude de se estranhar. Mas em seguida, seu semblante traduziu certa insegurança diante da reação da assistência, que repudiou a grosseria. Afinal, Gabeira é dos políticos brasileiros mais respeitados, justamente por seu compromisso com a ética, com a liberdade e com a democracia. Seu envolvimento em ações chamadas terroristas no passado explicava-se em um contexto do qual o próprio Gabeira, já distanciado dos fatos, fazia a crítica.
Percebendo o erro, ao retornar aos Estados Unidos, Hitchens escreveu uma crônica se retratando. Disse – não, talvez, sem certa ironia – que apreciava dois ex-terroristas: um deles era o Gabeira. Mas do episódio ficou-me a impressão de Hitchens ser capaz de sustentar posições com veemência, mesmo sem o necessário conhecimento do contexto e dos fatos.
No ano seguinte, recebi-o em Porto Alegre, aonde viera conferenciar no âmbito do seminário Fronteiras do Pensamento, cuja curadoria então eu integrava. Lembro-me de ter sido aquela uma semana atípica, pois em função de alguma dificuldade de datas e agendas – cujos detalhes hoje já me escapam – dois dias depois da conferência de Hitchens, outra grande intelectual pública norte-americana, Camille Paglia, proferiria também sua fala. Normalmente, o Fronteiras do Pensamento recebia no máximo um convidado por semana. Mas, naquela oportunidade, Hitchens e Paglia estariam ao mesmo tempo em Porto Alegre. Sabedor dos diversos temas que os opunham, a começar pela Guerra do Iraque, contra a qual Camille havia sido das primeiras vozes intelectuais e se levantar nos Estados Unidos, vi-me numa verdadeira saia justa para evitar a todo custo um encontro dos dois.
Pessoalmente, Hitchens mostrou-se um sujeito afável e envolvente, de conversa agradável e inteligente. Olhos azuis penetrantes faiscando num rosto bonito, embora algo inchado. E continuava fazendo jus a sua fama, consumindo quantidades industriais de bebida alcoólica. Foi agradabilíssimo com todos em um jantar de boas vindas oferecido pela organização do seminário do restaurante Don Peppo. Surpreendeu-se ao ouvir contar da importância que o Brasil tivera no Iraque nos anos 1970, até a Guerra do Golfo, trocando, por petróleo, frangos, carros, material bélico e obras de engenharia. O desenvolvimento da indústria petrolífera dos dois países estava umbilicalmente conectado. Por que ninguém sabe disso, quis saber? Porque se sabe muito pouco sobre o Brasil, alguém respondeu com percuciência. Encantou-se com a conversa de convivas eu conheceram bem Bagdá antes da guerra. Elogiou os vinhos chilenos que foram servidos. E, finalmente, confirmou-me que se arrependera da indelicadeza precipitada contra Gabeira no ano anterior.
No dia seguinte, não gostou muito de ficar aguardando no camarim e na sala de recepção o momento de subir ao palco do salão de atos da Ufrgs. Pediu para dar uma rápida caminhada no Parque da Redenção, enquanto aguardava. Queria respirar o ar da noite que caía e, aparentemente, descarregar a adrenalina contida antes do início da conferência. Tinha uma energia física impressionante.
A intimidade com o palco era completa. Em segundos, preencheu todo o ambiente e engolfou a todos com movimentos lânguidos e uma voz aveludada, timbrada em inconfundível sotaque britânico. Hitchens era um virtuose da palavra escrita, mas também da oratória. Pausava e acentuava com elegância, conferindo ritmo a sua exposição e magnetizando a audiência. Suas primeiras palavras trataram de conquistar o público, agradecendo a oportunidade de estar em uma cidade tão encantadora, na qual ele pôde caminhar sob a copa florida dos jacarandás… – estávamos em princípios de novembro.
Em seguida, enfrentou seu foco com determinação, expondo o argumento central do livro recém-lançado Deus não é Grande. Por cerca de 60 minutos, destrinchou a encruzilhada entre fé e razão – instâncias para ele irreconciliáveis – como a questão mais importante da contemporaneidade. Para Hitchens, a religião não só não teria função prática apreciável que não pudesse ser substituída, como a sua presença no mundo a tudo envenenaria. Propôs um ateísmo radical como forma de combater o domínio da ilusão e contribuir para a emancipação do ser-humano, professando sua adesão inequívoca ao evolucionismo e à ciência, bem como se afirmando como uma espécie de paladino de um Iluminismo renovado. Depois de empenhar-se em escandalizar a esquerda doutrinária desde o fim dos anos 1980, agora, por meio desse libelo ateísta, Hitchens estava se reconciliando com parte de sua origem trotskista, reproduzindo a máxima materialista que percebia a religião como ópio do povo. No espaço destinado às perguntas do público, descartou ainda a utilidade do compromisso do catolicismo latino-americano com os direitos humanos e desprezou as conquistas estadeadas pela Teologia da Libertação, resumida a mais uma estratégia de mistificação.
A íntegra da conferência está publicada no livro que organizei juntamente com Fernando Schüler e Juremir Machado, editado pela Editora da Unisinos.
Terminada a sessão, tive a oportunidade de trocar algumas impressões com o conferencista, dando sequencia a conversa iniciada já na véspera. Perguntei-lhe se não estava partindo de uma premissa frágil e, de certa forma, também algo sectária, ao repelir a possibilidade da uma razão lúdica, tal qual a imaginada por São Tomás de Aquino, cuja retomada, mais recentemente, vem desenvolvida em autores diversos como Heidegger e Michel Maffesoli. Hitchens considerou Aquino um místico, crente em fábulas como a astrologia. A religião, argumentou, surgiu como explicação de mundo antes do advento da ciência, depois da qual se tornou uma narrativa ilógica, descartável e inconveniente. Infelizmente, acreditava, o mundo contemporâneo estava retroagindo ao abraçar um retorno ao irracionalismo místico no momento em que a era da razão deveria se consolidar. Objetei-lhe que talvez esse retorno ao lúdico estivesse se dando em decorrência de um estresse coletivo causado pelo excesso de materialismo e racionalismo, lembrando precisamente o que Stephen Zweig escrevera no prefácio de seu Brasil, um país do futuro; e, ainda, que Zygmunt Bauman interpretara o Holocausto como um drama de toda Humanidade, e não apenas do povo judeu, justamente por ter sido um desdobramento em escala industrial do padrão racional modernista. Hitchens fitou-me com um misto de curiosidade e ceticismo – não indicava ter lido o livro de Zweig, o Brasil parecia figura improvável no seu esquema mental ancorado numa dinâmica de cânones ocidentais e, por fim, o nazismo lhe parecia um fenômeno totalitário muito mais potencializado pelo irracionalismo do que pelo excesso de racionalismo. O impulso para o religioso, insistira, estava na origem do totalitarismo, cuja versão mais acabada seria a indistinção absoluta entre espaço público e privado por conta da afirmação de um panóptico sistema de autoridade e vigilância.
Mas o Iluminismo não necessariamente vivia em estado de choque sistêmico com o religioso, podendo em muitos casos emergir da própria ambiência espiritual, insisti, invocando a generosidade precursora do jesuíta Padre Antônio Vieira para com índios e judeus no Brasil do século XVII. Para quem se acostumou a perceber o Iluminismo como apanágio do século XVIII francês e anglo-saxão, creio ter meu argumento lhe parecido insólito. Disposto a enquadrar logo aquele debate com uma questão de efeito, Hitchens desafiou-me a citar pelo menos uma religião que não se valera do divino para justificar um esquema de dominação do masculino sobre o feminino e que não promovera a diluição do indivíduo e da liberdade em face de um arcabouço moral aplastante.
Pensei em enveredar por considerações sobre a centralidade da mulher na cultura judaica (HItchens era filho de mãe judia, embora tenha sido informado dessa condição apenas depois da morte de sua progenitora), mas antevi a pletora de argumentos ensarilhados de antemão para contrapô-las. Desloquei assim a questão do monoteísmo para o sincretismo, registrando serem parte expressiva dos sacerdotes nas religiões afro-brasileiras mulheres ou gays. Associando tais manifestações do sagrado à Santeria cubana, Hitchens foi logo argumentando que não podia ser bem assim, pois em Cuba o comando dos terreiros era hegemonizado por homens e ele não percebia nada de libertário nesses sistemas. Seu tom parecia indicar que os considerava no mesmo plano das superstições banidas da Europa com o extermínio das bruxas durante a Idade Média. Bizarro, pensei, pois tal conceito não estaria a indicar uma vitória definitiva, sobre mentes pretensamente ilustradas, da Inquisição, talvez a mais totalitária – para estar em sintonia com o pensamento de Hitchens – das manifestações monoteístas?
Com calma, procurei explicar-lhe que o sincretismo afro-brasileiro guardava, na melhor das hipóteses, parentesco distante da Santeria cubana, pois reconfigurara elementos de diversas tradições africanas, combinando-se historicamente com o catolicismo popular, a pajelança indígena, o espiritismo kardecista e até o budismo, tornando-se, portanto, algo bem diferente daquilo que ele eventualmente conhecera em Cuba e ainda mais distante do vodoo praticado em New Orleans, tradição, esta, muito pouco conhecida no Brasil. Tratava-se de uma crença dinâmica e diversificada, com razoável grau de penetração e visibilidade na sociedade. Ademais, se era o totalitarismo de uma moral generalizante que tanto o incomodava nos monoteísmos, porque considerar como primitivos estes sistemas de crenças que eram exatamente incapazes de estabelecer universalismos morais, nos quais a noção de pecado é fluída, quase inexistente, o paraíso e o inferno se realizam no aqui e agora, na vida real – religiões, enfim, que aceitam o mundo como ele é e as pessoas como elas são, propugnando a satisfação dos desejos individuais no presente? De resto, para quem encampava a lógica dos cânones ocidentais, reconhecendo nos gregos antigos a origem de nossa cultura, como ignorar que os criadores da filosofia crítica achassem perfeitamente natural combinar o exercício da lógica com oferendas, inclusive sacrificiais, às suas divindades, como, aliás, o próprio Sócrates recomendou a um discípulo seu?
Hitchens ouviu-me, talvez mais por cordialidade do que por interesse. Nossa conversa infelizmente não pôde prosseguir, pois o tempo do qual dispúnhamos se esvaía. Disse-me, amável, que adoraria voltar ao tema em outra oportunidade. Pareceu-me sincero. Mas não pude afastar a impressão de que, para alguém que se propunha a discutir o divino, ele dominava com superficialidade constrangedora a história comparada das religiões. Senti impulsos de recomendar-lhe leituras básicas, como o romance infanto-juvenil A viagem de Théo, de Catherine Clément. Isso provavelmente o teria irritado. Mas a evidência científica de argumentos sociológicos e antropológicos, buscados à realidade cultural brasileira, desmontavam a tese deblaterada em seu libelo ateísta.
Hitchens poderia ter-se limitado a combater os males do fatalismo religioso, com seus fundamentalismos, intolerâncias e constrangimentos de toda ordem à liberdade, à ciência e ao indivíduo, no que estaríamos de pleno acordo. Mas pretendeu ampliar sua crítica para um universalismo simplificador da realidade, tão aplastante quanto qualquer fatalismo moralista. E fê-lo apoiando-se em conceitos rasos fixados em terreno argiloso. Em especial, por desconsiderar as especificidades contextualizantes da História e perceber o sistema de crenças humano como uma engrenagem estruturalista. A confusão dos fundamentalismos com a totalidade das religiões nos manifestos de Hitchens, bem como de Sam Harris e Richard Dawkins, foi, em seguida, precisamente apontada pela historiadora britânica Karen Armstrong, em artigo de 2009.
Normalmente, confesso, não tenho muita paciência em digerir esses manifestos. Li, por exemplo, Luc Ferry, que, basicamente, diz as mesmas coisas que Hitchens, mas em francês, num estilo menos figadal e revestido de pretensa legitimidade filosófica. Penso que estas são expressões intelectuais de uma Europa culturalmente cansada, cada vez mais tíbia em desenhar algo novo. Ademais, entre o ateísmo reducionista de Hitchens e o fatalismo de criacionistas ou fundamentalistas há um universo inteiro a ser explorado.
Registre-se a obra do sociólogo pernambucano Gilberto Freyre, ou dos poetas modernistas Mario e Oswald de Andrade, cuja ode à hibridação cultural brasileira testemunha a desimportância entre nós dessa cisão quase genética entre fé e ciência que tanto abala os europeus e norte-americanos. Outra coisa não o mostram as pesquisas recentes que indicam que cerca de 90% dos brasileiros acreditam em Deus, sem, contudo, necessariamente precipitarem-se em um fatalismo desabalado e atávico. Embora, por exemplo, o debate sobre o uso científico de células tronco tenha alcançado o STF, envolto em forte emocionalização, o criacionismo não tem hoje força suficiente para arrancar posições ao estado laico instaurado desde a Proclamação da República em 1889. Da mesma forma, se o reconhecimento dos direitos dos homossexuais é cassado no Congresso Nacional, por pressão de bancadas evangelizadas, o está sendo paulatinamente garantido na Justiça.
Vale também invocar o peculiar testemunho do filósofo paulista Vicente Ferreira da Silva, morto prematuramente em 1963, que combinou com originalidade a problemática existencialista heideggeriana com a tradição espiritualista portuguesa, propondo uma razão lúdica, uma ciência irredutível a utopias, combinada com o poético, um humanismo indissociável do afeto e da natureza. No extremo oposto, por suposto, desse Iluminismo afunilado ventilado por Hitchens.
Pode-se referir, ainda, o ateísmo ilustrado de Camille Paglia, cuja tese de doutorado, sua obra seminal, muito a propósito, deslinda uma abordagem cultural a partir da história comparada das religiões. Camille, ateia assumida, acredita que as religiões carregam um sistema ético e de valores capaz de contrabalançar com certa eficácia a exacerbação hedonista e consumista do indivíduo contemporâneo. Desconcertando muitos libertários de esquerda em cujo front ela também se aduna, Camille ainda sustenta a pertinência do ensino religioso nas escolas. Mas o esgrime numa perspectiva culturalista, pois, segundo ela, a história comparada das religiões permitiria aos jovens a percepção de diferentes visões e interpretações de mundo, já que, ao fim e ao cabo, é isso o que cada sistema de crenças promove, donde se descobririam muito mais transversalidades e semelhanças do que oposições irreconciliáveis, favorecendo-se, assim, a emergência da tolerância.
De qualquer forma, o mundo tornou-se menos interessante depois da morte de Hitchens. Meu contato com ele foi efêmero e eu não li senão uma pequena fração de sua obra. Não tenho, portanto, condições de avaliar o quanto sua projeção pública apoiava-se com solidez sobre um conjunto de fôlego, escrito para permanência no futuro, ou sobre libelos apaixonados catalisadores das atenções no presente imediato. Em sites e revistas, sobretudo nos Estados Unidos, já começaram a sair artigos e dossiês sobre Hitchens, como este no Salon.com. Então, o tempo dirá. Mas Hitchens era sem dúvida um sujeito de conversa muito agradável, sedutor, dono de uma oratória brilhante e articulada e que exercia um importante papel – mesmo estrando errado, ou mal escorado em seus argumentos –, ao suscitar questões polêmicas, de instigar permanentemente o debate de ideias.