“Caminhar é ter falta de lugar”, disse Michel de Certeau. “É o processo indefinido de estar ausente e à procura de um propósito”. O filósofo francês pincela, em poucas palavras, a qualidade mística que tem acompanhado, ao longo do tempo, a singela prática de se locomover com as próprias pernas.

As lhamas são as mais famosas, mas não as mais frequentes visitantes quadrúpedes da Trilha Inca
A circundação do Monte Kailash, no Tibete, é tida como um rituais mais sagrados do budismo e do hinduísmo. O Caminho de Santiago, na Espanha, é reverenciado e percorrido por milhares de peregrinos anualmente. E o nosso continente também abriga um desses itinerários que compõem o panteão das trilhas mais conhecidas e desejadas do mundo: a Trilha Inca.
A Trilha Inca fascina não só pelo esplendor geográfico, mas sobretudo pela herança cultural que guarda. Estendendo-se por mais de 40 quilômetros (a rota possui algumas pequenas variações), ascende a partir do rio Urubamba, atinge o seu pico a 4200 metros de altitude, e depois desce até 2720 metros, altura na qual fica o portão do sol, que dá acesso às ruínas de Machu Picchu.

Uma das tantas descidas por entre sítios arqueológicos
Três amigos de longa data me convocaram para a expedição, e, apesar de estarmos no Peru bem no meio da temporada de chuvas, não houve como recusar o convite. Sabíamos que, quando chegássemos a Machu Picchu, depois de quatro dias de caminhada, provavelmente veríamos mais nuvens que ruínas. Sabíamos que teríamos de enfrentar uma garoa persistente na maior parte do tempo. Mas sabíamos que sabíamos muito pouco sobre a cultura do povo que um dia constituiu o maior império das Américas, e foi a consciência dessa ignorância que nos motivou a mergulhar no universo Inca para aprender mais sobre ele… a começar pelo fato de que o próprio nome da trilha talvez não fosse o mais adequado.
- Quechua era a denominação do povo que habitava essa região. – Honório, o nosso guia durante a caminhada, explicou assim que adentramos a primeira subida do primeiro dia. – Inca era o título exclusivo do rei desse povo, em um determinado período. Houve Incas mais importantes e Incas menos importantes, mas, quando falamos de “cultura Inca” ou “Trilha Inca”, na teoria, estamos falando de uma cultura restrita a esses reis, ou de uma trilha que só eles percorriam… E olha: eu duvido que qualquer Inca um dia tenha feito essa caminhada que a gente está prestes a fazer, viu…

Cusco, ponto de partida para a maioria das expedições, já oferece vislumbres da cultura quechua
Enquanto os Incas não se aventuravam pela trilha que conectava a capital do império, Cusco (“umbigo do mundo”, em quechua), à cidadela sagrada de Machu Picchu, muitos outros o faziam. Estruturas circulares de pedra pontilham as margens do caminho, a cada quatro ou cinco quilômetros. Quando uma mensagem precisava ser transmitida entre um lugar e outro, mensageiros se encarregavam da tarefa: corriam até uma dessas estruturas, e compartilhavam o aviso com o próximo companheiro, que já devia estar esperando ali. Depois, esse segundo mensageiro corria até o próximo ponto de “passagem”, a partir de onde outro quechua levaria a mensagem adiante, numa espécie de telefone sem fio de grandes proporções, até que o aviso chegasse ao seu destino.
- Em outras palavras – Honório não continha seus devaneios quanto ao passado glorioso daquele caminho –, mesmo há muito tempo atrás, esta trilha já era cheia de gente correndo pra lá em pra cá.
A superlotação de fato chegara, em tempos recentes, a um nível insuportável. Deparando-se com o desafio de preservar uma das rotas mais cobiçadas do mundo, o governo peruano decidiu impôr um limite de visitantes simultâneos à Trilha Inca. Hoje em dia, somente 500 pessoas (200 estrangeiros, 300 carregadores e guias) podem transitar por ela no mesmo dia.

No ponto de maior altitude durante a trilha, com o sugestivo nome de “passagem da Mulher Morta”
- A medida freiou o crescimento das operadoras de turismo da região – nosso guia lamentou –, mas foi necessária. Já bastam o próprios nativos que não sabem cuidar desse patrimônio…
A explicação para o resmungo ficou pendente. Nossos pulmões já estavam comprimidos pela altitude. A voz não encontrava brecha entre as inspirações, ansiosas pelo oxigênio rarefeito. Chegando perto do ponto mais alto da trilha, no segundo dia de caminhada, evitávamos falar muito e ocupávamos a boca com punhados anestesiantes de folhas de coca.
Foi mais tarde, já de volta a Cusco, que compreendemos um pouco da reclamação de Honório quanto a um suposto desdém para com Machu Picchu. Na periferia da cidade, trombamos, por acaso, com um artesão descabelado. Sem parar de trabalhar em uma representação de Pachamama (divindade quechua relacionada à Mãe Terra), cumprimentou-nos e nos convidou para conhecer seu humilde ateliê.

O artesão de Cusco lapidando uma pequena escultura de Pachamama
Sem tirar os olhos dos talhos que desenhava na sua figura, explicou-nos estar lidando com serpentina, uma pedra encontrada na região da Trilha Inca, e com supostas propriedades energéticas. Lastimado, confessou ter de surrupiar estoques de sua matéria-prima ilegalmente:
- Desde que limitou o acesso de não-residentes ao perímetro da trilha, o governo tornou ilegal a exploração da serpentina. Isso quer dizer que, para que eu continue trabalhando, tenho de “roubar” pedras da minha própria terra…
Não julgamos o artesão. O carinho com que esculpia evocava um respeito que tratamos de absorver. E, o fascínio que ele mesmo parecia sentir por aquele material, nós pudemos experimentar já chegando ao final da nossa caminhada.
O terceiro – e penútimo – dia de trilha era o menos íngreme de todos. Por entre úmidas florestas, e através de trilhas estreitas que ladeavam precipícios, tivemos vislumbres rápidos de uma série de montanhas que lembrava o cenário extraterestre do filme Avatar. As nuvens, contudo, não davam trégua. Nos acompanhavam, como que tentando esconder o que pudessem para adiar a nossa surpresa diante da majestosidade do ambiente em que penetrávamos.
Blocos de serpentina foram anunciados pelo nosso guia, antes do último pernoite no sagrado território quechua:
- Ali, Felipe – Honório apontou -, abraça aquela pedra esverdeada e tenta sentir um pouquinho da energia dela. Muitas construções nessa trilha foram edificadas com ela.
O cansaço e a dor nas coxas se fizeram notar quando tentei sucumbir ao poder da serpentina. Depois de alguns segundos acocorado, envolvendo a pedra com os braços, desisti da empreitada e acabei cedendo ao sono latente.
O dia seguinte começaria às três da manhã. Às seis, deveríamos chegar ao portão do sol, e enxergar Machu Picchu ao vivo pela primeira vez. Dentro da cidade sagrada, teríamos todo o tempo do mundo para abraçar pedras e sermos abraçados pela energia delas. Deixaríamos de “estar ausentes”, e talvez fôssemos encontrar o propósito daquela jornada.
Caso contrário, não haveria problema. Arranjaríamos outra “falta de lugar”. Escolheríamos outro destino (outro percurso!). E começaríamos a planejar uma próxima peregrinação. No final das contas, caminhar é muio mais do que ir de um ponto a outro. Como já diria o poeta: caminhar é preciso.

Em meio às nuvens e às multidões, nós comemoramos: Machu Picchu só vai perder o encanto quando a fotografia, além de cores e formas, conseguir reproduzir o misticismo
Felipe Sant’Ana Pereira | Março de 2015
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