O ano em que Carmen Cauduro de Oliveira, hoje com cem anos, nasceu, uma invenção revolucionou o dia a dia das pessoas. Era 1912, quando a General Motors anunciou, nos Estados Unidos, uma das mais importantes invenções da indústria automobilística: o motor com partida elétrica. Tornou-se possível dar a ignição no motor apenas girando uma chave, eliminando a manivela.
Em uma época em que até o relógio parecia mover-se mais devagar, ganhava-se em agilidade, praticidade e mobilidade. Com a novidade, os veículos movidos a gasolina, mais rápidos e potentes, começaram a se popularizar. Anos mais tarde, a novidade chegou ao Brasil, quando Carmen ainda era criança. Essa foi apenas uma das grandes transformações que a moradora da Rua Doutor Timóteo, no Moinhos de Vento, presenciou. E que, até hoje, a impressionam:
– Não consigo lidar com a ligeireza das coisas de hoje. A gente vai dormir com um fato acontecendo, e de manhã já virou tudo. Não sei se isso é bom.
Da janela do apartamento onde mora há pelo menos 35 anos, em frente ao Parque Moinhos de Vento, ela vê o imenso tapete verde tão característico da região. Quando os netos eram bem pequenos, descia para levá-los no parquinho e tinha de se sentar ao sol, pois ainda não existiam, por ali, as imponentes árvores. Hoje, vê os incontáveis prédios em volta do Parcão e aponta para o centro:
– Só tinha aquele prédio ali. O resto era chão batido.
Porto-alegrense de nascimento e de coração, como gosta de enfatizar, passou quase toda a vida na Capital. Perdeu os pais muito cedo e foi morar com os tios em um hotel no Centro. Por isso, acompanhou de perto o desenvolvimento da Porto Alegre do século 20.
– A cidade preservava uma tranquilidade. Ainda criança, eu brincava na calçada, pulando corda – narra.
Com 16 anos, a estudante começou a trabalhar como alfabetizadora no, então, Porto Alegre College, hoje Instituto Porto Alegre (IPA). Pegava um bonde do Centro até o final da Avenida Independência, e o resto do trajeto era feito a pé.
– Tínhamos de subir todo o morro caminhando. A família Mostardeiro, que tinha uma grande fazenda na região, abria as porteiras onde hoje fica a Rua Dona Laura e nos deixava passar para encurtar o caminho – lembra, com detalhes, de uma época em que o bairro Moinhos de Vento ainda nem existia.
Foram 10 anos de subidas diárias no local conhecido atualmente como morro do IPA.
– Hoje, quando caminho com as pernas firmes, sempre lembro que adquiri isso naquela época – garante, enquanto desliza seu andador com agilidade pelo apartamento repleto de objetos antigos, fotos de netos e bisnetos e recordações de um século de história.
Por volta dos 25 anos, casou-se pela primeira vez e foi morar em Flores da Cunha. Acostumada com a dinâmica da cidade, estranhou muito a vida na Serra. Quando tinha apenas dois anos de casada, no entanto, uma tuberculose vitimou seu primeiro marido. A viuvez precoce trouxe Carmen de volta à Capital, de onde não saiu mais. Casou-se novamente, poucos anos depois, com o procurador Álvaro de Oliveira. Prestou um concurso e tornou-se funcionária pública. Foi nessa época que sua vida mudou muito.
– Meu marido gostava muito de viajar, então conheci muitos lugares como Europa, Argentina e Uruguai.
Talvez por isso a maternidade tenha sido tardia. A primeira filha chegou quando Carmen tinha 40 anos e o segundo, aos 45 anos. Sempre muito ativa, só parou de trabalhar aos 61 anos, quando se aposentou. Dez anos depois, em 1983, ficou viúva mais uma vez. Até completar 90 anos, ainda morava sozinha no apartamento em frente ao Parcão. Há poucos anos, a filha Carmen Regina foi lhe fazer companhia. Se ao longo da história sua vida foi acelerada pelas novidades e inovações, hoje a centenária vive a tranquilidade de uma velhice em casa, sem muitas atividades.
– Levo uma vida parada, sentada em uma cadeira, olhando para frente e trabalhando o cérebro. Quase não saio, não aceito mais convites para chás e almoços pois minhas mãos e dedos não se mexem mais com agilidades, então prefiro ficar em casa – diz, serena.
E atribui os seus cem anos de vida ao tempo em que percorria a pé o trecho hoje tomado por avenidas no Moinhos de Vento, até o Morro do IPA.
– Nunca imaginei que chegaria tão longe.
luisa.medeiros@zerohora.com.br
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